27.5.13

Quasi stellar, de Abel Neves



De Quasi Stellar de Abel Neves ressumam imagens provenientes de uma observação atenta, de um sujeito lírico que a elas é permeável. Apesar do buraco negro que a vida essencialmente é («a vida é uma fraude», p. 8), de si ainda se podem projectar alguns jactos da mais intensa luminosidade, mercê dos discos de acreção constituídos pelo nosso coração rodando. A vida incrusta-nos alguns estuantes momentos de júbilo, que são rastros da temporalidade nossa conatural: «vou a caminho de uma luz qualquer / de uma ruína que deixará de o ser» (p. 37). Nos poemas mais longos, prevalece uma narratividade a exigir um fôlego resistente, sucedendo-se as imagens a um ritmo não raro vertiginoso, a que se juntam breves descrições de acções e falas pertencentes a algumas personagens para além do poeta. Desta forma, estes poemas apresentam um real fragmentado, sendo o poeta a película onde se inscrevem várias imagens e sensações mais ou menos prosaicas que dão conta da passagem voraz do tempo e de uma existência puramente imanente:

as visões que possa ter
não interessam
não são mais do que isso
visões que naufragaram
ali a borboleta   o além dela
e pronto (p. 39)

Algo afim ocorre em «viagem à grécia julho de mil novecentos e oitenta e três», prosa poética que parece dizer algo da falibilidade da memória. Nesta prosa poética, ainda ocorre, no teatro de Epidauro, um encontro do poeta com Policleto (p. 26), o que me evoca o café que Jorge de Sena toma com o Minotauro, e revela-se nela também visão de artista quando o poeta imagina a expectativa de uma multidão para ouvir os seus poetas (p. 26). Outros poemas por vezes parecem apostados em revelar a espessura ontológica do mundo, cartografando o transcendente contido no imanente.


Dois poemas mais um com deriva

1.
no livro
leio veloz
e penso feliz (p. 45)

Este haiku revela o deslize do significado sob o significante, como diria Roland Barthes. No livro, sobretudo no bom livro, por efeito de truques de retórica, entre os quais a paronomásia, o significado de uma palavra pode contaminar o significado de outra (fruto da arbitrariedade que une significante e significado). O género lírico é o mais propício à ocorrência deste fenómeno, uma vez que teoricamente trabalha mais sobre o significante do que o texto dramatúrgico ou o romance. É isto exposto por este poema de Abel Neves, em que «veloz» evoca «feliz», isto é, um significante evoca outro foneticamente próximo (as diferenças radicam no traço soante que distingue as fricativas e nos traços alto, arredondado e recuado que distinguem as vogais). A poesia radica num excesso de sentido que exponencia as interpretações, apesar da medida, da cesura, que a si mesma impõe. A poesia e a literatura em geral não são totalitárias: o sentido está sempre por fazer, o leitor participa de todo o poien. O leitor é, na mesma medida, sádico e masoquista, isto é, tanto devassa o sentido do poema, como as suas coordenadas significantes podem ser por ele abaladas. Para além disso, note-se a ambiguidade: a velocidade da leitura, ou a velocidade de pensamento que a leitura impõe, desencadeia felicidade. Os bons livros são os que nos põem a pensar, os que nos fazem levantar a cabeça. Felizes pelo pensamento, mas, na verdade, outras vezes nem tanto.
2.
entre o verde verde das folhas
a nuvem é um alvo branco
o cavalo no ribeiro é um dardo branco
tu não   não tens a brancura
tens a paz entre os mamilos
e esperas que seja uma flor silvestre
as horas enchem-se de melancolia
adormeces com a boca na dobra do lençol
e é tudo
um lençol branco
igualzinho a cavalos e a nuvens (p. 48)

O desejo temporariamente apaziguado, a morte depois do coito. Parece-me evocável «De tarde», de Cesário Verde. A comparação com o ramalhete rubro das papoulas é sugerida apenas (partindo do pressuposto de que «seja» é terceira, e não primeira, pessoa do singular), embora entre os mamilos o lugar seja de paz, talvez seja esse um sítio onde pousar a cabeça. Os mamilos propriamente ditos não proporcionarão a paz, mas o seu inverso, a turbulência desencadeada pelo incessante movimento do desejo. Já a contemplação de alguém adormecendo provoca a melancolia, até pela sugestão de morte convocada por tal imagem. Para além disso, o tempo passa, no ribeiro correm sempre diferentes águas, as folhas caem. Vagueia uma nuvem, dardeja brancamente um cavalo, rutila uma boca. Quasi stellar. E é tudo, nenhum sentido é inferível, o sentido íntimo das coisas resiste às palavras que lhes atiramos para cima: a mudez das coisas, assim descritas no poema, é o suficiente, não é necessário conjecturar mais sobre elas além do júbilo que elas provocam. Durante este abatimento libidinal post-coitum incandesce por fim o silêncio.


3. Um com deriva

entrar no mosteiro a qualquer hora
ir adiante no recolhimento   na ruína
sem livro nem pressa
a confissão das pedras é oração
no claustro há o suspiro do lagarto
mas isso é no claustro    nas pedras ao largo
íntimas do musgo (p. 52)

O mosteiro educa para a lentidão. O livro, também, aliás: é preciso parar para ler. Recolher-se e recolher (Maria Filomena Molder), sentir e pensar por imagens, permeabilidade do sujeito, sujeito propriamente dito. Entrar num livro é entrar num mosteiro, de alguma maneira. Toda a recolha, toda a colecção de fragmentos como reconhecimento da ruína. O poema é a realização dessa recolha – e, já agora, desse recolhimento. O que nas pedras é oração: parar, ter um ritmo diferente do da vida. O suspiro do lagarto existe no claustro: de facto, o mundo alarga-se, a percepção é maior, se pararmos. E se re-pararmos. Isto é válido igualmente para o esforço requerido pela leitura: há um mundo que subitamente deixa de ser imperceptível. Isso é no claustro, esta dilatação ontológica só lá ocorre. Deixar o livro de fora substituindo-o pelo mosteiro e pela oração. São ritmos diferentes, o mosteiro não é compaginável com a rapidité moderna desejada pelo carteiro de Jour de Fête de Tati (Gonçalo M. Tavares). O poema também é musgo (Carlos de Oliveira): resquício, ruína, understatement inclusive.


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