«O odioso low profile», Isabela Figueiredo
«Tenho um defeito profissional que se conjuga que
nem flores com certas características da minha personalidade, e que em
Portugal é considerado uma enorme deselegância entre as pessoas
educadas, as pessoas de bem, as pessoas contidas, as pessoas que se
esforçam por andar na rua fazendo de conta que nem sequer existem: falo
alto.
Em Portugal toda a gente quer ter low profile,
ou melhor, traduzindo à letra, perfil baixo, ou melhor, traduzindo
livremente, não dar nas vistas. Não tenho nada contra. Não percebo é por
que motivo as incomodo tanto. Não faço esforço para ter profile
algum. Deixo que a natureza faça o seu trabalho. Existo, exprimo-me...
Não seria capaz de viver debaixo desse autocontrolo. Passei toda a minha
vida a desejar fugir a todos os controlos possíveis. Não ando nas ruas a
pensar, ai, estou a falar alto, se calhar era melhor baixar a voz, ou,
ai, dei uma gargalhada, se calhar não devia gargalhar tão
expressivamente, podia disfarçar, tapar a mão com a boca, e emitir um
ligeiro ri-ri-ri. Não, deu-me para tirar partido da vida toda, e é
sempre a abrir.
Ontem, à hora de almoço,
calhou sentar-me, na cantina, ao lado de uma colega a quem pus a alcunha
secreta de "nada de extremismos, nada de exageros", porque é o que a
apanho a dizer todas as vezes que lhe roço com a perna a orla do vestido
discreto. Conversávamos sobre umas políticas lá da fábrica, tudo com
muita moderação, e num certo momento perguntei-lhe quem tinha feito a
afirmação x. Ela respondeu, o Pedro. Eu exclamei, o Pedro?! Qual Pedro?!
Há lá muitos nas diversas secções da fábrica. E a "Nada de extremismos"
respondeu-me secamente, fala mais baixo. Secamente, com censura, mesmo a
matar. Por segundos, senti-me sua filha, sensação deveras
traumatizante. A "nada de extremismos", a maior mosca-morta da fábrica,
que não se compromete com nada, não diz sim nem não nem talvez, e deve
abrir a torneira da casa de banho de cada vez que vai fazer xixi,
mandou-me baixar o volume. Olhei à volta. Não havia por ali ninguém que
pudesse de alguma forma tirar ilacções da minha pergunta, "Qual Pedro?",
mas calei-me, por boa educação e boa vizinhança, pensando, claro, que
eu teria a delicadeza de não mandar calar os outros com tanta frieza.
E andei.» (Adenda a Cadernos de Memórias Coloniais, p. 5-6; ou aqui; negritos meus)
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