O AMANHECER
Ainda durmo
e entretanto sucedem-se factos.
Clareia a janela,
acinzentam-se as trevas,
surge o quarto do espaço sombrio
e nele tentam firmar-se rastos de luz pálidos e vacilantes.
A seguir, sem pressas,
pois é uma cerimónia,
amanhecem as superfícies do tecto e das paredes,
separam-se as formas
umas das outras,
a esquerda da direita.
Alvorecem as distâncias entre os objectos,
chilreiam os primeiros clarões
no copo e na maçaneta.
Já não só parece, agora é no seu todo,
aquilo que ontem foi movido,
o que caiu no chão
e o que se enquadra nas molduras.
Só os pormenores
ainda não deram entrada no campo da visão.
Mas atenção, atenção, atenção,
muito parece indicar que regressam as cores
e mesmo a mais ínfima coisa vai recuperá-las
juntamente com o tom da sombra.
Muito raramente isto me espanta, mas deveria.
Habitualmente acordo na condição de testemunha atrasada,
com o milagre já consumado,
o dia estabelecido
e o amanhecer com mestria em manhã transformado.
CONTRIBUTO PARA AS ESTATÍSTICAS
Em cem pessoas,
sabedoras de tudo melhor -
cinquenta e duas;
inseguras de cada passo -
quase todo o resto;
prontas para ajudar,
desde que não demore muito -
quarenta e nove;
sempre boas,
porque não conseguem de outra forma -
quatro, talvez cinco;
dispostas a admirar sem inveja -
dezoito;
constantemente receosas
de algo ou alguém -
setenta e sete;
aptas para a felicidade -
vinte e tal, quando muito;
individualmente inofensivas,
em grupo ameaçadoras -
mais de metade, com certeza;
cruéis,
por força das circunstâncias -
é melhor não sabê-lo,
nem aproximadamente;
com trancas na porta depois da casa roubada;
quase tantas como
aquelas que as têm, antes da casa roubada;
não levando nada da vida a não ser coisas -
quarenta,
embora preferisse estar enganada;
agachadas, doloridas
e sem lanterna no escuro -
oitenta e três,
mais tarde ou mais cedo;
dignas de compaixão -
noventa e nove;
mortais -
cem em cem.
Número, até agora, não sujeito a alterações.
Wislawa Szymborska, Instante
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