11.2.12

Mercantilismos

Antes do mais, diz-se ser um dever deixar-se a língua como está, pois um acordo seria uma intervenção política. Ora, gostaria de saber que língua escrita não tem acordo ortográfico. Quanto à aprendizagem, é arriscado dizer-se se ajuda ou não - a escrita é uma convenção que não é motivada pela maneira como se fala, apesar de intuitivamente o parecer. Por isso, é sempre um código novo para as crianças. A questão da etimologia é pertinente, mas pergunto: vamos passar a escrever «poer» só para ser visível que o verbo «pôr» tem como origem «ponere»? Ou desconhecemos que farmácia é palavra de origem grega apesar de não mais escrevermos com ph? A etimologia foi-se tornando invisível com a evolução ortográfica do português, mas nem por isso se perde o rasto dela - se se estudar. Pode ser que a forma como se fala se altere com o acordo, porém isso já é do campo da adivinhação, e é supor que se fala como se escreve (afinal não era o contrário?), o que levaria por exemplo os falantes a pronunciar as consoantes mudas. Ora a aprendizagem da fala é autónoma da aprendizagem da escrita. Outra questão tem a ver com a ideia de que isto foi congeminado pelos brasileiros - e aqui o conservadorismo raia o complexo de inferioridade mais gritante. O trema até agora em vigor na norma brasileira - afinal tão útil, concordo - desaparecerá. Nestas coisas há cedências de ambas as partes. Claro que o acordo tem demasiadas zonas nebulosas, como no uso do hífen. No entanto devíamos manter-nos abertos a delinear um acordo, mais consistente, e não entrar em nacionalismos bacocos baseados em crenças metafísicas - como seja crer-se que a perda consoante é uma perda de alma portuguesa, de identidade. Como se uma língua fosse a alma de um povo, e como se houvesse essências dos povos e mais latamente das coisas. Esse debate filosófico já há muito se ultrapassou. E creio ser este o ponto de partida da crónica de Rui Tavares. Aprecio mesmo assim o romantismo de Vasco Graça Moura, contra a motivação mercantilista do acordo. O problema é assistirmos a uma mercantilização de todo o organismo social. Dois exemplos entre inúmeros: a venda pornográfica do país a ditaduras como a China ou Angola e a venda dura a que se sujeitam cada vez mais os povos por tuta e meia. Compreendo que ver a língua a ser devassada seja difícil. Mas não o é menos ver a retidão do país, as vidas e os corpos dos povos sujeitos a igual devassidão. É que, embora não pareça, há coisas mais importantes do que a língua e a literatura, coisa que a postura pública de Vasco Graça Moura nem sempre deixa entrever.

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