15.8.25

Barcos e poder

A dada altura do Abecedário, Gilles Deleuze conta o episódio mais revolucionário que vivenciou. Não foi durante o maio de 1968, mesmo se ele trabalhou com doentes esquizofrénicos testando a arte como forma de auto-constituição e de expansão vital; não foi com os presidiários a quem ouviu e entrevistou com Michel Foucault. Gostaria de poder ler, um dia destes, a biografia cruzada de François Dosse (a Deleuze e Guattari) para compreender melhor todo aquele frenesim experimental.

O acontecimento mais revolucionário deu-se quando, devido às férias pagas, muitos franceses invadiram as praias até então de usufruto exclusivo dos burgueses (o filósofo não refere a data, é possível que tenha sido em 1936, por decisão de León Blum). Para a família de Deleuze, como para outras, foi o terror ver operários e funcionários subitamente a ocuparem o mesmo espaço. Nunca tinham sentido tanto medo, viam os privilégios serem partilhados, quem sabe em risco. Era outra tomada da Bastilha, do gozo (incluindo o ócio, apesar de tudo).

Na Europa de 2025, sobretudo nos países do sul, não se vive igual terror quando imigrantes entram de barco e a burguesia — pequena, média, mental, o que for — assiste à entrada de barco de imigrantes de terras oprimidas e financeiramente colonizadas? Nós tínhamo-los numa redoma, mas eles, espevitados e arteiros, fazem-se ao caminho, arremetem contra a miséria que lhes impusemos. Atiram-se com tudo o que têm, o corpo e um saco de pertences, contra essa burocracia legal que os espolia com indiferença. É revolucionário e paradoxal ver este medo empreendedor, o lançar-se ao largo seja como for, dar o peito ao trabalho e ao desconhecido. Contávamos nós prosseguir nesta pasmaceira estéril e abonada, e não é que os esquecidos, os soterrados da História se levantam e entram, sem mais aquela, sem pedirem licença, em território europeu, nas terras do soberano que não está para exercer a hospitalidade, esse valor tão grego e tão cristão e que, por isso mesmo, não deveria parecer tão incompatível com os princípios ocidentais? Há uma diferença, porém: um terror que não chega por leis tranquilas, nem pelo consenso social que as motivou. Mas pelo desespero económico e pelo medo de morrer. É um terror, no que toca ao económico, não acomodado pelo direito, que por vontade ocidental se torna por isso a ele exposto (e a toda a violência que não assume letra de lei).

Ainda um aparte. Slavoj Zizek considera que a premonição de Jacques Lacan se confirmou. Para a expor, cito Luís Mourão, que a reeelabora a partir de Didier Eribon: “Em 1969, Foucault convida Lacan para uma série de conferências em Vincennes. Criada no rescaldo do Maio de 68 como experiência piloto de autonomia universitária, a Universidade de Vincennes é um lugar conturbado: confrontos sucessivos com o ministério, com as forças policiais, entre as várias facções extremistas. O psicanalista é mal recebido, a conferência é breve, apenas o suficiente para Lacan deixar uma das suas famosas «cartas roubadas» e abandonar a sala: «Aquilo a que vós aspirais como revolucionários, é a um mestre. Tê-lo-eis»”. Eis o que se verifica, uma realização perversa das velhas lutas pelos novos mestres: quis-se a abolição das restrições sexuais, conseguiu-se uma desvinculação praticamente absoluta, em que nos tornamos mónadas indecifráveis e distantes, tanto paralisados pelo pavor ao assédio, como armados de um formalismo que desvitaliza e desencanta qualquer encontro. Zizek dá ainda o exemplo de Elon Musk e dos seus 14 filhos de diferentes mulheres, um desbragamento não só elitista como falocêntrico. No plano do trabalho, pugnou-se pelo fim da alienação nas fábricas e conseguiu-se converter cada qual em empresário de si mesmo, livre para se poder explorar. Isto é, o trabalho deixa de ser alienante, nós é que nos impusemos a alienação por necessidade de sobrevivência. Por fim, exigiu-se um ensino menos teórico, mais adstrito aos problemas reais e concretos. Criaram-se cursos de 3 anos em que a submissão ao prático — um saber mais profissionalizante e outros slogans do mesmo jaez — é o principal factor de estupidificação geral na academia (como se a entrega ao entretenimento e ao consumo não fosse um dispositivo repressivo, jamais libertador) e de pórtico à tirania. Não estivéssemos na era da objetividade — 5 minutos para os judeus e 5 minutos para os nazis, sentenciou Godard — e talvez Adorno pudesse ainda ter algo a dizer. Cito um passo do fragmento 43 de Minima moralia, entre outros que evidenciam a esterilidade da reprodução mecânica do pensado, dispositivo evidente de poder: “Quem alguma vez, pela força da sua precisa reacção em face da seriedade da disciplina de uma obra artística, se submete à sua lei formal imanente, à coerção da sua configuração, vê desvanecer-se-lhe a prevenção do meramente subjectivo da sua experiência como uma mísera ilusão, e cada passo que dá, graças à sua inervação extremamente subjectiva, para se adentrar na obra, tem uma força objectiva incomparavelmente muito maior do que as grandes e consagradas conceptualizações acerca, por exemplo, do «estilo», cuja pretensão científica se impõe à custa de tal experiência. Isto é duplamente verdadeiro na era do positivismo e da indústria cultural, cuja objectividade é calculada pelos sujeitos que a organizam. Perante esta, a razão refugiou-se toda, e sem janelas, nas idiossincrasias, acusadas de arbitrariedade pela arbitrariedade dos poderosos, porque eles querem a impotência dos sujeitos, em virtude da angústia frente à objectividade que só em tais sujeitos se encontra preservada”. Diagnóstico pontualmente discutível, mas que, no seu todo, instiga uma compreensão das novas perversões, diversamente mascaradas, que aí vêm.

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