25.1.24

Kaurismaki, Folhas caídas

1.
Quem está em coma pode esperar 5 minutos. Não mais do que isso, ainda assim bem mais do que os mais vivos. Kaurismaki com um certo humor absurdo como o de Roy Andersson. Muito ligeiro sim, até porque este filme não se projeta tanto para o plano existencial.
Ressuscitar duas vezes para poder amar. Enfrentar medo de sofrer, o medo de não ter amparo, de estar exposto.
É evidente que o absurdo é o quotidiano como tal e também na época que nos toca. Muitos esquecidos de um destino, que até o possam suportar com álcool ou um cãozinho.
Personagens à beira de sucumbir, mas que resistem. Ela sobretudo: não há pré-aviso, responde ela ao chefe, quando demitida após ter sido apanhada a levar para casa um produto fora da validade. A coragem no gesto que faz da dignidade o mais importante. Uma frontalidade que é a insolência exercida só contra quem esteja em posição superior.

2. 
“Nem eu, sequer, me sentia especialmente irritado contra essa miséria: aceitava ter de pagar o direito que definitivamente me outorgara de não exprimir outras ideias que não fossem as minhas” (O amor louco, Breton).

3. 
Uma certa perversidade (distração minha?) na primeira cena no bar: quando ele e ela se encontram, já dela nos tínhamos esquecido, é como se ela fosse invisível.
Rimo-nos das personagens quando elas se riem delas próprias. Um riso logo a seguir calado. É por isso que este humor não é o de Roy Andersson, em cujos filmes nos rimos da nossa queixa sem fim. Este mundo é esmaecido e tem personagens maquilhadas pela morte, constituído por um niilismo sem outra saída que não a suspensão momentânea pelo riso, ainda que mordaz e, por isso, que nos distancia da dor. Mas os contrastes de cores primárias nos planos de Kaurismaki são um fundo dionisíaco sempre alegre trazido à superfície, o entusiasmo e o espanto do começo. O amarelo, por exemplo, é como a Primavera, “o tranquilo espírito vaticinador de infinitas esperanças”, até inclusive “a obscura simpatia para com o mundo social que se desdobra” (Novalis). Viver é trágico e doloroso, sim, mas não te esqueças do urgente e do essencial. O eterno-retorno, tal como o leio em Vontade de Poder, é esse dizer sim apesar de tudo, depois de tudo o que se sofreu, o único e reiterado sim.

4.
E a ficção avança porque há limites, porque há morte. O mal esquece o fundo.
Limites, limites, limites, tão altos e maciços como os muros à volta dos cemitérios. Cercados pela morte, pela tumba, pela terra – e ainda por muros maciços. Eis a vida dos vivos, eis a prisão ainda maior dos mortos.
O mundo é construído com base naquilo que não se pode fazer. Isto não podes, aquilo não podes. Nada podes, nada posso.

5.
E havia uma mulher tão parada que fazia entrar no silêncio e no tempo, agarrada à sua guitarra.
E ainda assim: um correr trôpego atrás de uma outra vida, o não ter descido logo de divisão. Esse último ir a tropeçar para um destino que, não sendo épico, não habitado pelo fluxo de uma intensidade, de uma revolução permanente e privada, será ainda assim o confronto com essa alteridade que nos desloca para algum outro lugar desconhecido.

6. 
As personagens estáticas e sem expressão; o barulho é uma mentira em face do informulável, em face do espectáculo do mundo.

Kaurismaki is the business: Fallen Leaves reviewed | The Spectator

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