30.1.24

Céline: ronda e esquecimento

— Nosso cabo! Quando a alvorada tocar leve-o à vestimenta! Entendido?... Pobretanas é que ele não parece nada... não!... lá isso!... É uma coisinha de sonho! E tope-me agora o perfil! Já se lhe foram as cores, palavra! Está aqui, está no hospital! O que vai ser de ti, passarinho, quando te obrigarem a voar!

(...)

Ah! Fanfarrões das dúzias, vão só ver como elas mordem... até se vêm todos, de morte. Esse treino! Esse treino! Direita volver! Direita volver! Arma ao ombro!... Que eu veja um só a gozar o pagode! Meheu, não quero molenguices!

(...)

— É carne para canhão! Garante o Governo. Quando dás por ela já não existes! Já vinhas tísico...
Acertava-nos o passo à força de arrotos gritados bem alto... Oache... Oache!... A interromperem-lhe o calor oratório...

(...)

A gente lá se esgueirou... O mais rente à parede que era possível. Que lá do alto caía urina... chuva é que não... uma cascata, mijo de todos os andares. Que aguaceiro estranho nos batia. E para me não safar do chuveiro diversas vezes me deram empurrões, os sacanas, para debaixo das regadelas... Queriam ver-me bem encharcado, que eu tivesse um baptismo a sério. Verdadeiras fontes por baixo das janelas de todos os andares... A mijarem cá para baixo às revoadas, em girândolas chatas como sei lá o quê... às rajadas...

(...)

E guinou por ali adentro numa lufa-lufa, com a lanterna a saltitar de casa em casa, a recolher cagalhotos. Um picadeiro autêntico à volta das rabadilhas. Enfiava-se por ali fora, mesmo-mesmo... até os calhaus arriarem quentinhos no seu jacto de vapor... Trambulharem para o meio da ciranda... Era de virtuoso... Tinha de manejá-la de esquisita forma, dar o salto no momento exacto! Numa galocha e na outra... antes que aquilo se esgueirasse, espirrasse em caganeira... Cheio de equilíbrio, tomava tento para a colheita ser apanhada num só monte... num montículo muito alto e fumegante.

(...)

Que o amor é filho de cigano.
Trauteava, seguia outra vez por ali fora com a ciranda da colheita. E aparecia numa direcção diferente; com vinte quilos de brioches por cada passeata, bem fumegantes, de cheiro acre, frágeis!

(...)

No fundo da maralha estava quente, fofo e até mesmo embalador. Pena era o apertanço, sobretudo pelas barretinas, as esporas, os sabres, aqueles aços que casavam mal com os nossos membros, furavam costelas. 

(...)

Pura escola de amestragem, rapaz! Não penses que acabaste! Para o Biribi, que nem ossos se te aproveitam! Vais lavrar desertos!

(...)

Sinto a fronha feita num carrocel! Azelha! Os tiras viraram-se do avesso para me dar com o canastro em pantanas! Sei muito bem o que digo! Já as paguei! Desgraçados há em todo o lado, mas o pior é a gente ter de empanturrar-se com merdunça a um tusta por dia! 

(...)

— E rôo! Rôo! Aaá! — fazia ele. — Mas isto é a morte do serviço! Nem mais! Há lá Deus possível!... Ó chulos do olho do cu de Deus de merda, que só vistos! Ó nosso cabo! Ó nosso cabo! Rôo! Raá!... Com a pressão daquela fúria sufocava...

(...)

— Ah! Que eu estou lixado convosco! Ah! Que sorte! Não se lembram de mais nenhuma?
Apesar disso os homens insistiam, continuavam na deles, que a senha era mesmo aquela, «Margarida».
— Tinha mesmo que ser nome de puta! Só me pensa na trancada, esta vadiagem! Isto é assunto de pixotadas?

(...)

— Tu! Meu cafre! Meu fiteiro! Se me voltas a aparecer sem te acharem nada! Se me apareces feito flor de estufa! Sangue é o que te faço vomitar! Hás-de bolsá-la toda, à tua vida!

Céline, De três em pipa, trad. Aníbal Fernandes

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