22.11.23

Ensurdecidos, desejo corrompido

Tentou matar-se por mais do que uma vez. Desta feita, em casa da enfermeira que a contratara para serviço doméstico. (A enfermeira é Isabel Ruth, assassinada nos seus Verdes anos, um amor demasiado juvenil, uma paixão que sucumbia ao desespero económico e prático. O peso da melancolia, de um amor que foge, para o jovem ávido violento e fatal que não suporta o fim de nenhum entusiasmo.)
Vidas no limbo, sem sequer condenação. Que evitam uma morte — Wire — a única vitória.
O contraste básico de cores de um Kaurismaki. O beijo é escuta da delicadeza. E o lance bressoniano e contraintuivo: as mãos aceitam a primeira nota e a seguir devolvem as duas. Resistem à condescendência. Eu tenho passe, diria uma personagem de John Ford. Aliás, nos desertos de Ford (The three godfathers) um bebé está mais protegido do que nalgumas cidades. Uma resistência passiva, a destas personagens, e destrutiva. Quando o desejo já só pode ser desejo de morte. Trata-se de algum modo de uma dramatização que evidencia as formas globais do esbulho. Em alguns, existe esse repúdio pelo gozo narcísico ou a sua inversão no modo como caem. Um modo de recolhimento que não consente outra coisa que repudiar o poder, qualquer exercício de força. Alguns só encontram destino em sacrificar-se pelos outros — dizia Canetti de si próprio. Se o desejo não vai ao encontro do que a vida lhe demanda, desvia-se eticamente. Mas note-se que o desejo precede. 
E o barulho o barulho o barulho.
Das sequências mais extraordinárias do cinema português. Ossos de Pedro Costa (1997).


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