7.9.23

Salas burguesas, atenção, fantasia de ser irmãos, volúpia do lugar-comum

José Maria ia às vezes por casa da irmã, instado por ela que o apresentava aos seus alegres convivas, bem-humorados demais para lhe prestarem atenção. A atenção é uma capacidade de pertencer ao que nos rodeia, de sentir, quase sempre. Ora aquela gente estava por demais confiada nela própria, para poder restituir aos outros olhar, voz e coração, que não eram propriedade que pudesse gozar e utilizar sem dela fazer entrega e participação. Essas salas burguesas, ruidosas como gares e onde apareciam os espécimes mais calculados da sociedade, não tinham nunca o que se chama o espírito de conviver, a fantasia de ser irmãos, ainda que pelo breve instante em que se troca uma chávena de chá ou uma palavra. Havia muitas frases quase totalmente recebidas intactas das ideias feitas que duravam penosamente, esterilmente, há séculos; convocavam-se as pessoas para se elogiarem durante uma boa hora e possivelmente renovarem a sua provisão de anedotas, de farsas tão manuseadas que acabavam por se despedaçar e ir, como mensagens da loucura através das eras, aparecer com uma vestimenta nova noutra sala onde houvesse a mesma multidão curiosa de temas modernos e onde houvesse os mesmos planos para se divertirem. As ideias medíocres nunca perecem, há sempre uma muleta que as leva adiante e um coxo que as adopta; e é mais difícil subsistir num verso divino do que numa ratice — só que um realiza-se, outra só se consente.

Agustina Bessa-Luís, O susto

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