21.5.23

As frases de Kleist

«Em vão — enquanto o cadáver do pai era levado por entre os lamentos dos criados do paço — ela se agarrava aos joelhos do seu irmão, suplicando que a ouvisse; Rudolf, de modo violento, chamejante de indignação, perguntava-lhe, inclinando-se para ela: se poderia fornecer em seu abono um testemunho que anulasse a incriminação? E como ela replicou entre tremores e estremecimentos: que infelizmente não poderia apelar para mais nada a não ser para a integridade da vida que levava, uma vez que a sua aia, por causa de uma visita que na referida noite havia feito aos seus pais, se tinha ausentado do seu quarto de dormir: ele repeliu-a aos pontapés, tirou uma espada pendurada na parede e ordenou-lhe, clamando furibundo numa paixão desgovernada, que abandonasse no instante a casa e o Burgo, chamando pelos cães e pelos serviçais.»

Heinrich von Kleist, O Duelo, trad. Maria Filomena Molder

Nenhum testemunho é mais válido do que a vida que levamos. Mas não na modernidade em que só a prova serve. Como em Kafka, estamos sempre metidos nas cláusulas dalguma organização, a fazer inquéritos ao raciocínio.

A pontuação a fazer muitas vezes o lugar da lógica. Um corpo seguro não por ganchos sólidos, as partes não devidamente pregadas, curso lógico que segue por pequenas pinças, alfinetes débeis a pendurar densos e contrastivos blocos de ideias. Frases esburacadas; como dias em direcção própria, renascimentos incansáveis.

Um texto-marionete: é um corpo belo e grande, sim, seguro apenas por fios mínimos. A desmedida que não se sustém pela linguagem, só, quando muito, através da narração.

Maria Filomena Molder fala de uma guerra sem quartel contra a inefabilidade do mundo. Descrever: escrever, escrever, para que o mundo não fuja totalmente, ele que não se fixa em absoluto. 

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