24.9.22

Nómadas e Homens-Com-a-Bala-na-Cabeça

«Os Nómadas avançam de maneira diferente, e não como o Homem-Com-a-Bala-na-Cabeça, que segue uma linha recta que alguém desenhou no chão».

O Diabo, Gonçalo M. Tavares

A alegria que é poder ler, poder escrever — poder caminhar sem ser por linhas rectas, desenhadas por alguém. No caso, poder começar a ler por qualquer lado, como se o livro fosse um quadro. O começo carece de começo; qual a origem da água que mana de uma cascata? Pergunta-se Quignard.

O nómada decide não ter uma bala alojada na cabeça, variação possível do que pensava Lenz, para quem o cérebro era uma arma.

É pela distorção contínua do pensado que o pensar e o escrever são possíveis. Clarice: "mentir o pensamento seria tirar a única alegria de escrever".

"Ora a literatura, antes de mais, é para si mesma; mas, depois, e através disso, é para a utopia do seu outro: a refiguração do mundo e do sujeito" (Luís Mourão).

Uma vida que fosse traçada por outro; cabeça fechada com bala lá dentro. A bala como a irresistível decepção. Melancolia, segundo Quignard: a fascinação pelo real. Da etimologia à filosofia, as coisas (res) que são nada (rien). O fascínio pelo real, ou seja, não é possível viver.

(Um outro caminho: a bala seria o caroço da maçã, a morte que transportamos. Mas bala, além de morte, é mal calculado; e o homem com ela parece, no trecho, aquele que aprendeu a heteronomia.)

É claro que as crianças querem sobreviver enquanto crescem, mas também querem não ter medo, ainda que isso, viver sem medo, pareça um luxo. Como sabemos, as crianças, como os nómadas, são sumptuosos. 

Creio que todos reconhecerão à obra de Tavares o mérito de ter aberto o campo de possibilidades. Nomadismo cuja base são decisões claras sobre como viver — uma outra linha recta.


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