29.4.22

Idolatria das boas almas

"Uma entrevistada do programa da BBC, Inglaterra, na Hora das Mulheres, falou sobre suas experiências como prisioneira de guerra:

- Quando uma pessoa já experimentou muitos sofrimentos, sabe apreciar as fraquezas e as boas qualidades até mesmo dos próprios inimigos. Por que deve ser nosso inimigo completamente mau, ou a vítima completamente boa? Ambos são criaturas humanas, com o que é bom e o que é mau. E creio que se apelarmos para o lado bom das pessoas teremos êxito, na maioria dos casos.

Sei o que ela quis dizer, mas está errado. Há uma hora em que se deve esquecer a própria compreensão humana e tomar um partido, mesmo errado, pela vítima, e um partido, mesmo errado, contra o inimigo. E tornar-se primário a ponto de dividir as pessoas em boas e más. A hora da sobrevivência é aquela em que a crueldade de quem é vítima é permitida, a crueldade e a revolta. E não compreender os outros é que é certo."

Esta crónica de Clarice Lispector, incluída em A descoberta do mundo, mereceu o seguinte comentário de Maria Filomena Molder:

"Eis uma decisão cujo teor é inteiramente qoheletiano: «Há uma hora em que se deve esquecer a própria compreensão humana e tomar um partido, mesmo errado, pela vítima, e um partido, mesmo errado, contra o inimigo.» Trata-se de não abdicar da oposição entre vítima e carrasco, e isto independentemente do carrasco ser bom pai, bom filho e bom chefe de família, ou de a vítima ser conhecida como uma rematada mentirosa. É preciso separar as águas. As obscuridades fazem irredutivelmente parte da vida, já as confusões são de evitar e há modos de as evitar. Quando está em causa limitar e julgar, o esforço de compreender o crime, a violência sem freio, apresenta-se como um gesto leviano, se não for o caso de uma premeditada forma de preguiça e de falta de coragem, podendo chegar ao ponto de se converter numa ideologia que se vende bem: a idolatria das boas almas". 

3 Conferências. Primeira. Lança o teu pão sobre as águas (Sobre o Qohélet / Ecclesiastes)


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