18.7.19

Quando as frases são literatura

E Bloom finalmente deixou de os ver, o que não significa
que eles tenham deixado de existir,
pois se fosse obrigatório a cada momento
ver-se tudo o que existe, o mundo não seria mundo
mas concentração de todas as coisas
no mais pequeno espaço.
Não existiriam planeta nem países
mas apenas um armazém com tudo.
Um armazém geral, bem se poderia chamar,
um armazém metafísico.

Gonçalo M. Tavares, Uma viagem à Índia


Não o mundo, mas o corpo — armazém metafísico, ainda que menos entusiasmante, íntimo, ou seja, pouco grandiloquente. A pele que é passado, movimento, às vezes espera. O nariz que é dias longos, quando passam esses corpos breves que queimam com tal intensidade que nos enchem de alegria e de pavor. Na esquina do movimento, o pavor é a última memória da alegria. De que fala um texto quando apenas é literatura? Ou os ouvidos que adivinham uma queda fatal? As horas tartamudeiam sono de tardes vãs, a boca aberta porque o mundo escapa inapelavelmente. Os olhos já são abertos a plenitude, enquanto a respiração não hesita por um momento a luxúria. A respiração quer ser salva pela alegria — uma respiração lúcida são dias de exercício. Não me esqueço de ti, Jerusalém, sei-o agora, que o agora está aqui, vida plana e plena, outra evidentemente. Oferecem-me mel mas enjeito enegrecer e segregar um crepúsculo e a rua sem ninguém é a única saída e o corpo é um vestígio com outro vento outras mãos outras palavras. O corpo não seria mundo, o corpo-corpo, corpo-noite, corpo-concentração, das memórias que ensinam o humano, hipótese de construir um corpo e alguma bondade. Memórias que também desaprendem o corpo, o atascam em metafísica doméstica. O corpo com todas as suas tralhas de armazém com idade, mãos ansiosas por pensar, acabrunhadas, com medo de desconhecer uma função. Nada mais do que este minuto, apenas a mais grossa indiferença.


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