14.5.19

Agustina, notas de Mónica Baldaque


Em certo sentido, acho que as minhas escolhas não foram tanto escolhas como heranças. Não havia mais escolhas possíveis.


Achava as outras mães excessivamente dominadoras, autoritárias. A minha mãe não era nada disso; era muito mais solta, muito mais atenta a coisas verdadeiramente importantes. E brincava em relação ao que não era importante.



Acho que a minha mãe nunca foi muito sensível a encantos… Ela dissecava de tal maneira as pessoas, desde as empregadas até aos médicos, aos escritores, enfim, aos poetas que frequentavam a casa,  a todos… Ela analisava as pessoas com a mesma força, com a mesma exigência, com a mesma inteligência, tanto fazia quem fosse.



A minha tia Amélia era uma mulher profundamente lúcida, que é o que a minha mãe sempre foi e ainda é, hoje. Uma lucidez que ultrapassa tudo aquilo que temos como medida. Ela via o que os outros eram, apercebia-se das engrenagens das relações, do pensamento das pessoas, e utilizava isso de forma magistral. Acho que toda a obra da minha mãe foi isso: falar das relações humanas, escutá-las até à última. E foi isso o que aprendeu com a tia Amélia. Uma mulher que praticamente não sabia ler, e que assinava mal o nome dela, mas era uma mulher que também não precisou disso para ser uma figura imponente e central no lugar onde vivia. Penso que toda a educação da minha mãe – e considero “A Sibila” um livro exemplarmente educativo, na medida em que ensina o que é a educação – foi esse exercício de leitura da alma humana. Isso é esgotante. 



E o meu pai, que era muito rigoroso, encontrava desacertos na escrita. E então vinha perguntar: “…mas isto, esta personagem aqui chama-se assim, mas lá atrás chamava-se de outra maneira… É a mesma, é outra?”



Não tem época, porque tem que ver com um conhecimento que está muito para além da sua época, desta época ou de qualquer outra. Tem que ver com um conhecimento muito mais profundo da alma humana, que é eterna. A alma atravessa as épocas todas e há-de permanecer. 



Quando pego num romance dela para o ler, isso enche-me os dias, enche-me os meses, porque ali tudo entra de uma maneira tão certeira e para meu uso, para o conhecimento que faço das pessoas, que não me parece que uma coisa assim possa morrer no fundo de uma estante.


Viver é difícil. Sabe Deus o que sofrem, porque são feios, porque são medíocres, porque mentem, porque se escondem, porque odeiam o que lhes fez falta, e o que não esperam. Foi isso sempre o que quis transmitir aos meus filhos, essa atitude de atenção e de condescendência. 


A minha mãe sempre achou que o bem e o mal são muito escorregadios, qualquer um deles rapidamente pode estar no outro lado. É com isso que nós temos de contar nesta vida. O mal deve ser entendido. Assim como o bem. Deve-se reflectir sobre o mal para que se possa entendê-lo e, se necessário, combatê-lo. Mas não sei se se deve combater o mal, não estou segura. A fronteira é que é muito difícil de traçar: perceber onde começa o mal e onde acaba. A fronteira é tão ténue que me parece que só no nosso íntimo somos capazes de percebê-lo, mas para isso há que ter uma grande vida interior e um grande conhecimento de si próprio.


Eram pessoas que a desafiavam, mas não para que ela crescesse e se elevasse, não, era para a destruir. 


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