23.2.19

Tudo se aproxima e se esvai no mesmo pânico confuso

POEMA 16
[de Dos Jogos de Inverno]

Omnis creatura est vertibilis in nihil
  Tomás de Aquino, Summa Theo. III

vou tirar de mim todas as imagens Primeiro o redondo panorama do mundo
completo em repouso na obscura água transparente como um autêntico paradoxo Depois
o resultado sobre a tela: linhas perfeitas dividindo o intenso
clarão da terra, tão semelhantes são inferno e paraíso. E em seguida 
não mais verei, lançado na pista desmesuradamente branca, as árvores
erguendo-se móveis na memória do corpo,
e as palavras, que são o efémero hálito no instante da partida, e o intervalo das palavras,
ficarão mordendo a pele inteira do espaço Assim pouco a pouco

esquecerei quem fui, a inumerável espera de gerações e desencontros,
o céu muito claro e indiferente como um chão ao contrário amparando a queda das águas,
e no grande vazio fixarei os pequenos pontos luminosos porventura estrelas restos de nebulosas
Tudo se aproxima e se esvai no mesmo pânico confuso Agora perdi um braço ao passar pela ponte
a tua boca tem um calor misterioso e banal que me vem à memória no momento do salto
Fecho os olhos a tempo de não ver como cresces
ficarás crescendo dentro de mim como uma carne indecisa
uma coisa que se não vê e alimenta o olhar
Encontrarei esse lugar preciso que nada anuncia E no vasto painel electrónico
brilhará por instantes uma hora ao centésimo de segundo «este teve sorte/azar no seu tempo»
Agora a chuva abre minúsculos infinitos buracos na precária brancura luminosa
cairei pela certa antes de chegar à beira dos abismos Vertido
no áspero lugar de coisa alguma Basta virar a folha e nada aconteceu
a lisa pista intacta espera E os corredores, atentos à partida,
compactos se misturam vibrantes velozes alheios como quem se ignora
como quem nunca conheceu o limite redondo da paisagem

António Franco Alexandre


Sem comentários:

Enviar um comentário