14.1.19

Um idioma chamado Manoel de Barros

NO SERVIÇO (voz interior)

O que eu faço é servicinho à toa. Sem nome nem dente. Como passarinho à toa. O mesmo que ir puxando uma lata vazia o dia inteiro até de noite por cima da terra. Mesmo que um caranguejo se arrastando pelo barranco à procura de água vem um boi e afasta o rio dele com as patas para sempre. O que eu ajo é tarefa desnobre. Coisa de nove noves fora: teriscos, nhamenhame, de-réis, niilidades, oco, borra, bosta de pato que não serve nem pra esterco. Essas descoisas: moscas de conas redondas, casulos de cabelo. Servicinho de pessoa Quarta-feira que sai carregando uma perninha de formiga dia de festa. De modo que existe um cerco de insignificâncias em torno de mim: atonal e invisível. Afora pastorear borboletas, ajeito éguas pra jumento, ensino papagaio fumar, assobio com o subaco. Serviço sem volume nem olho: ovo de vespa no arame. Tudo coisinhas sem veia nem laia. Sem substantivo próprio. Perna de inseto, osso de morcego, tripa de lambari. Serviço com natureza vil de ranho. Tudo sem pé nem cunhado. Tem hora eu ajunto ciscos debaixo das portas onde encontro escamas de pessoas que morreram de lado. Meu trabalho é cheio de nó pelas costas. Tenho de transfazer natureza. À força de nudez o ser inventa. Água recolhendo-se de um peixe. Ou, quando estrelas relvam nos brejos. No meu serviço eu cuido de tudo quanto é mais desnecessário nessa fazenda. Cada ovo de formiga que alimenta a ferrugem dos pregos eu tenho de recolher com cuidado. Arrumo paredes esverdeadas pros caramujos foderem. Separo os lagartos com indícios de água dos lagartos com indícios de pedra. Cuido das larvas tortas. Tenho de ter em conta o limo e o ermo. Dou comida pra porco. Desencalho harpa dos brejos. Barro meu terreiro. Sou objeto de roseiras. Cuido dos súcubos e dos narcisos. E quando cessa o rumor das violetas desabro. Derrubo folhas de tarde. E de noite empedreço. Amo desse trabalho. Todos os seres daqui têm fundo eterno. 

Manoel de Barros, Livro de pré-coisas. Roteiro para uma excursão poética no Pantanal



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