22.11.18

Sobre a hipótese do pensamento, do múltiplo — sublinhando Hélia Correia

(…)

Foi como se apadrinhasse a ideia do bailarino na batalha, que, para mim, é sempre, primeiro do que tudo, o cavalo. É a imagem que tenho de um ser que, no meio da batalha, surge como músculo, movimento e graciosidade aterrorizada. Não é o guerreiro, é o cavalo. Mas o guerreiro também se cola ao cavalo, e tudo é animal em agonia, em terror.

(…)

A Europa perdeu a inocência. E esta já nem era assim tão pura… Tenho a sensação de que chegámos, com a fanfarra dos nossos progressos civilizacionais — nós, o Ocidente —, a uma espécie de júbilo pelo que somos, de auto-comprazimento. O bem-estar económico, seja real ou percepcionado, parece estar a rebentar pelas costuras. E não sei ao certo que fenómeno é este, que parece menos humano do que diabólico ou divino, mas de repente as coisas acontecem… Assim, depois do período de conquistas, o Ocidente parece ter alcançado esse regozijo com a sua perfeição: atingiu a sua própria beatitude. E sente que, para completar essa sua felicidade, tem de ser bondoso. Bondoso a todos os níveis, até ao nível da linguagem. Daí o politicamente correto. Estávamos, assim, a banhar-nos na nossa própria perfeição… Que não podia durar muito. Como as placas tectónicas estão em movimento também as sociedades estão em movimento.

(…)

Creio que nunca se tinha alcançado um período tão duradouro de bem-estar e de felicidade, além, é claro, de um sentimento de absoluta superioridade em relação às outras civilizações. E na tendência que há nos fenómenos civilizacionais para definharem ou implodirem ou são as ameaças que vêm de fora ou são os impérios que se destroem a si mesmos porque se abatem sobre o vazio que está no seu interior, e que vai aumentando.

(…)

Vejo a construção da bela civilização ocidental a abater pela força do seu próprio peso. Porque há abundância a mais, estamos doentes de abundância. Não era preciso mais nada. Essa abundância seria o suficiente para que perecêssemos. Claro que a acicatar isso há este passo que causa uma vertigem de mil anos em vinte anos de cronologia e que é dado com a chegada das novas tecnologias. Isso sim provocou uma grande revolução, que é aterradora porque não é acompanhada pela matéria humana. E quando falo de matéria falo também de espírito, porque as próprias faculdades mentais não estão aptas a acompanhá-la. Ora, isto cria um rasgão tremendo nas nossas sociedades.

(…)

A civilização é uma camada muito fina e rebenta quando está diante de uma ameaça. E julgo que o primeiro passo para se trabalhar sobre isso é encarar as coisas como elas são. Ora, a maior parte dos ocidentais não quer sequer encarar as coisas na sua verdade. As pulsões, os medos, os pensamentos primitivos, que estão latentes em tudo isto.

(…)

No fundo, estamos divididos em clãs, pequenas tribos, pequenas fações que acordam e começam a rugir. E o que é que penso depois de me atrever a olhar assim? Penso que depois de me despir de todos os pré-conceitos que fizeram a minha vida, e a vida de todos os — digamos — progressistas ocidentais, ao olhar para o mundo com olhos de hoje e não com o nosso antigo desejo, que oculta as coisa (ocultou sempre, e continua a ocultar), depois de ver exatamente o que se passa, então há que chamar pela outra coisa que faz parte do humano.

(…)

Quando digo que os deuses se retiraram, isso aconteceu, em primeiro lugar, para dar lugar ao monoteísmo. Foi uma passagem muito flagrante, com aqueles imperadores romanos cristãos a destruírem todas as marcas da antiguidade clássica. A deitar abaixo, a incendiar, a aniquilar tudo. Esse foi o primeiro passo, foi o passo que levou a que uma pluralidade encantadora de textos produzidos pelos humanos fossem proscritos. E o monoteísmo dali em diante passa a ser o quê? Uma história da luta pelo território. As grandes histórias religiosas que hoje se disputam são lutas pelo território. Foi então que toda aquela pluralidade se viu destruída a favor de uma unicidade do olhar, de um texto único, que determinou tudo durante séculos e séculos. A arte, a literatura, tudo estava submetido àquele texto único e continua submetida a outros textos que procuram imperar, como é o dos muçulmanos, o dos judeus… e lá continuam eles a matar em nome da fé. Alucinados pela leitura dos seus textos.

(…)

Tudo isto deriva de um enlouquecimento pelo texto. Tudo isto é humano. O que se forma é um vazio, e isso está patente nos movimentos new age, e nas diversíssimas derivações religiosas. Provavelmente, o homem não consegue viver só no plano da objetividade, nem das ilações científicas, que são tão pobres ainda. Ainda estamos no início do conhecimento científico. O homem não pode viver sem isso, e mesmo que o tenha substituído pela ideologia — e é evidente como o comunismo era uma religião, o fascismo era uma religião, e tudo isso deu os resultados que deu... Portanto, estas religiões não transcendentalistas não deram bom resultado. O que se vê é como essa aspiração se transforma em algo caricato. Esta coisa dos fãs e da celebridade, destes cultos laicos que têm ganho cada vez maior expressão. Tudo isso é humano e eu costumo parafrasear a célebre frase de Terêncio - «Nada do que é humano me é estranho» - mas tomando-a do avesso: «Tudo o que é humano me é estranho». Porque acho que ninguém entende realmente o ser humano.


Sem comentários:

Enviar um comentário