25.11.18

Devagar, s/z: leitor, mundo, Deus

PARA O LEITOR LER/DEVAGAR

(…)

Leitor acentuado, redobrado leitor moroso.
Que entende o relato sem poros,
o mês arroz dealbado sobre a pedra
sem orelhas, pedra sem boca. E que desce os dedos
sobre. Meus dedos pelo ar. E toca e passa.
Pelas pálpebras paradas. Pelos
cerrados lábios até às raízes.
E cai com seus dedos em meus dedos.
E espera devagar.
Leitor que espera uma flor atravancada,
balouçando baixa
sobre. Mergulhados
filamentos no terror
devagar.

Mas que espera. Doce. Contra o hermético
movimento do mundo.
E que o mundo movimenta contra.
As de Deus auxiliado
auxiliar. E que Deus movimenta contra. Suas ondas
muito lentas, amargas ondas muito.
Antigas, ignoradas, corridas. Sobre
a primeira face do poema. Leitor
que saberá o que sabe dentro. Do que sabe
de mais selado. E esperará
dias e anos dobrado, leitor. Varrido
pelo movimento dos dias.
Contra o movimento nocturno do. Poema devagar.

E que espera.
E para quem volto. Muitas coisas sobre
Uma coisa. Volto
uma exaltante morte de Deus. Auxiliado
auxiliar. O espírito, a pedra.
Do poema.
Leitor à minha frente. Vindo
do mais difícil lado
das noites. Ainda tocado e molhado
de suas flores aniquiladas.
Rodo. Para esse rosto difuso e vagaroso
Meu sono.
A fantasia minuciosa. A oblíqua inovação.
A solidão. Trémula devagar.

(…)

Herberto Helder, Ofício cantante


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