16.6.18

Avançar com a coluna ausente

Outra: Vais tornar-te um ser furioso, vais enganar, andar calado, vais tentar que a tua vida — ou pelo menos parte dela — se converta num laboratório. Vais precisar de astúcia, dureza de coração, desmedida — deixa correr essa lava, há-de queimar muita coisa, e tu bem mereces algumas cinzas: de tudo o que te apavora, de tudo o que sentes desde sempre no monte de Vénus da tua mão direita. Conheço-te. Conheço essas tuas fraquezas, essas paixões taciturnas.

Uma: Porque é que há uma dor em todos os lugares em que se viveu? Anos e anos açoitado por presságios, passou a correr por todas as coisas, mas nelas prendeu cabelos e roupa, ficou impregnado, marcado pelos seus sinais. Agora, eles, reunidos em sociedade plenária exigem a sua parte, pedem o pagamento de uma dívida que ele não poderá saldar.

Outra: O que estás a tentar fazer nem sempre tem bons resultados. Deita fora essa proximidade contigo, põe de lado esse feitiço da rememoração a quente. Põe o lamento na boca de outrem. Desfaz essa amizade com o teu próprio lamento. Deita pela borda fora os objectos sensíveis com os quais encheste a memória, alguns são surpreendentes, mas tens de te livrar deles e talvez te reapareçam desfigurados, macerados pelas ondas, transformados em pertenças do mar. Já não são mais teus, já não te protegem. Estão prontos para serem pasto das tuas chamas. Assim como os tens são refractários ao fogo, não consegues transformá-los em cinzas. E é isso por que anseias, sem saberes como fazê-lo. Tenta o que te disse. Requer uma disciplina feroz, uma frieza, um desprendimento, a que terás de obedecer sem teres de te decidir. Às vezes, sem dares por nada, já começaste a experiência que, também inadvertidamente, interrompes, e de novo te prendes amorosamente às tuas lembranças. Não encostes o ouvido à concha, o segredo que ouvias foi enterrado. Agora desce entre os mortos. Ao terceiro dia, ressurreição. Isso não sei.


Maria Filomena Molder, Dia alegre, dia pensante, dias fatais


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