Heteronomia
temático-estilística e território textual
O primeiro livro da série Mitologias é A
mulher-sem-cabeça e o homem-do-mau-olhado. Mais um mundo que compõe a
“heteronomia temático-estilística” (expressão de Luís Mourão, num artigo da
revista Diacrítica) definidora do
território textual de Gonçalo M. Tavares. Um caso singularíssimo na Literatura
Portuguesa de um autor que cria mundos e trabalha os seus temas e motivos segundo
a atmosfera de cada mundo e com as características da linguagem que o
configuram. Cada série é um Tavares, não há uma voz autoral atravessando todos
os textos. A riqueza deste território textual está na diversidade, que materializa
o entusiasmo de escrever avançando pelo desconhecido. De escrever errando e cultivando
o informe, um modo de não cortar o fluxo do desejo. Um território textual que
cresce na proporção da proliferação das suas séries e muitas obras de arte e
múltiplos estudos a que dá origem. Em Breves
notas sobre literatura-Bloom, um livro da série Enciclopédia cuja primeira edição teve a chancela da Periscopi, uma
editora catalã, o autor assinala que “o território de uma literatura é o espaço
para onde esta literatura empurra” (p. 90). Neste sentido, “um verso potente de
três palavras ocupa mais território do que seis volumes de um estudo enfadonho”
(p. 90). Há mais caminho a percorrer num bom verso curto ou numa frase estranha
e extraordinária do que num estudo longo e entediante. Os textos literários potentes
são os que instigam a criação de outros textos, danças, quadros, filmes, peças
de teatro.
Leis da
Física, nomes, literatura, informação e explicações
É cedo para compreendermos toda a configuração deste novo
mundo, Mitologias. Mas podemos falar
de alguns aspetos.
Trata-se de um mundo com leis físicas diferentes do mundo
tal como o conhecemos. O corpo de uma mulher sem cabeça está vivo, e até a
cabeça, movendo-se ambas as partes autonomamente. Uma ficção significativa para
pensarmos algumas questões identitárias: onde está aquela mulher, no seu corpo
ou na sua cabeça? Segundo os seus filhos, está no corpo: “O mais velho insulta
a cabeça da mãe; o do meio cospe-lhe, o mais novo dá-lhe um pontapé” (p. 12). A
cabeça não é mais importante do que o resto do corpo, nem o rosto é a única
parte do corpo – uma parte especialmente convulsa, sempre em movimento – que
nos distingue. Em O Bairro também já
estávamos num mundo à parte, mas de Mitologias
não se excluiu a morte, pois as suas personagens sofrem como os mortais. Mitologias não é uma investigação
divertida da especialização humana em fugir. Um mundo diferente, duro,
fantástico, mas não maravilhoso, com algumas histórias que lembram o mundo
terrífico e entusiasmante de Trilogia da
vida de Pasolini.
Outro aspeto importante deste mundo consiste no facto de as
personagens não serem, na maioria dos casos, reconhecidas por um nome próprio,
mas por uma característica ou um comportamento que as singulariza. A exceção
são as cinco crianças, que têm os nomes dos filhos de Nicolau II. O facto de
não ter cabeça identifica uma mulher; um homem é definido pelo mau-olhado que
os outros lhe reconhecem. Estes são os protagonistas deste romance, ou novela
extensa, ou reunião de contos. Mas podem tornar-se personagens secundárias em
livros seguintes desta série, nos quais ganham protagonismo as personagens
secundárias de A mulher-sem-cabeça e o
homem-do-mau-olhado. Não sabemos em que espaço e em que tempo decorre a
ação. Isto indica, digamo-lo de modo rápido, que o fundamental neste território
textual é investigar o ser humano, cujo comportamento não varia
significativamente segundo coordenadas espácio-temporais.
Devemos falar da linguagem. Mais sóbria e concisa do que
habitual, com poucos adjetivos, poucos elementos ornamentais, com as repetições
sintáticas e lexicais de uma litania ou de um sortilégio. A narração
centra-se na ação, o que potencia leituras do texto e devolve a literatura à
literatura, afastando-a da esfera informativa, estruturante da mundividência
contemporânea. Este pode ser um dos modos de ler a epígrafe final do texto, extraída
de “O narrador”, ensaio de Walter Benjamin: “Todas as manhãs somos informados
sobre o que de novo acontece à superfície da Terra. E no entanto somos cada vez
mais pobres de histórias de espanto. Isso deve-se ao facto de nenhum
acontecimento chegar até nós sem estar já impregnado de uma série de
explicações”. A mulher-sem-cabeça e o
Homem-do-mau-olhado é uma narrativa que pouco explica e expõe os eventos
sem julgamentos nem apresentação das suas possíveis causas, estimulando deste
modo a imaginação do leitor. O contrário dos eventos descritos em jornais e
televisões, que se mantêm na atualidade até serem esclarecidos totalmente os
seus efeitos e as suas causas. Os órgãos informativos fomentam uma espécie de
febre explicativa que anula o espanto. Sentimo-nos insatisfeitos quando algo
não está absolutamente claro. Queremos o consolo da explicação, o fim do
desassossego. Preferimos até, como observou Nietzsche em Crepúsculo dos ídolos, uma “explicação qualquer (..) à ausência de
explicação”. Quando se torna claro que, afinal, nada se esclarece por completo,
ficamos algo desiludidos. O fim da procura da clareza e da verdade é, muitas
vezes, o nojo e a desilusão, como diz com humor este verso de Manoel de Barros:
“As coisas muito claras me noturnam”. As explicações são a tentativa
infrutífera de cessar o espanto e, assim, de provocar o tédio. A literatura
vive da inquietação própria da ausência de explicações. Falar do fim do espanto
ajuda a compreender as causas da melancolia contemporânea. Não explicar tudo consegue-se
com um estilo depurado, árido, como começávamos por dizer neste ponto. É o não
querer avançar com explicações filosóficas ou psicológicas para tudo o que as
personagens fazem ou pensam que permite que o texto literário conserve a sua
força, não se gastando no presente como acontece com a informação. É a aridez
narrativa, a ausência de esclarecimentos e julgamentos, que suscitam “admiração
e reflexão”, como observou Benjamin no ensaio citado. Aridez que, de certo
modo, acelera a narração, ao cingi-la à ação. Uma velocidade diferente daquela
que encontramos em animalescos e Canções mexicanas, obras constituídas
por ficções narradas de modo embriagante e perverso com cortes, lacerações e
rupturas (ao estilo de Um copo de cólera de
Raduan Nassar). Neste novo livro de Gonçalo M. Tavares, encontramos uma espécie
de “narração-comboio”, avancemos com o termo, centrada na ação, veloz, como o
comboio que enlouquecia as pessoas que nele viajavam: “há coisas que não se vêem
porque estão longe, há outras que não se entendem porque passam demasiado
rápido” (p. 102). Notemos que esta rapidez narrativa acaba também por deixar
pouca margem à ironia, habitual nos textos do autor. Pois a ironia é um modo de
julgar os eventos.
Mitologias
do século XXI
Mitologias revisita
criticamente alguns mitos ou elementos mitológicos importantes na Europa. Não apenas
os oriundos da tradição greco-latina, mas também de outros tempos e latitudes. Mitologias é um título suficientemente elástico
para poder incorporar referências filosóficas e civilizacionais exteriores à
tradição clássica. O primeiro elemento mitológico revisitado é o Labirinto.
Fala-se da Revolução, que ganhou, em 1789, genericamente, o significado e o
simbolismo que hoje possui. Fala-se do gigante – homem com 2,35 metros – que a
comanda. Existe um Homem-do-Mau-Olhado perseguido pela comunidade, como tem
acontecido durante séculos, de um modo mais ou menos violento. Discute-se a
urgência moderna de mais velocidade, que fez com que o ser humano desenvolvesse
comboios ultrarrápidos. Da embriaguez – enlouquecedora – que a velocidade provoca.
Da necessidade que alguns humanos, nesta ficção, sentiram de inventar o cinema
e máquinas voadoras para fugir da Revolução. Aborda-se a Psiquiatria e os
eletrochoques, a lobotomia, a invenção de patologias, a obsessão com o
comportamento em linha reta, sem desvios, normal. Uma das personagens deste
mundo louco é Charcot, criador de uma maravilhosa máquina que faz lobotomias
(uma dentre as várias anacronias que reconhecemos na obra). Algumas personagens
visitam a casa-das-máquinas-da-história, pois a História tem um motor, como se
os eventos históricos fossem produzidos com a regularidade de um mecanismo. A
máquina é, talvez, a mitologia que mais peso tem na economia diegética da obra (um
motivo aliás recorrente no território textual de Gonçalo M. Tavares). A
Revolução matava todos aqueles que tinham esse comportamento tão humano como
tremer, sobretudo porque, por mais que o tentemos domesticar, o corpo é
imprevisível. A nossa vontade de controlo e previsibilidade, em resposta à qual
construímos tantas máquinas, termina no corpo.
A cada
um o seu O-kee-pa
Não havendo espaço para falar de todas as mitologias,
centremo-nos no destino do Homem-do-mau-olhado. Ele era acusado de causar
impotência àqueles para quem olhava, até mesmo às máquinas para as quais
olhava. Foi finalmente preso. Os juízes acusaram-no, estando ele de costas para
eles, como se fazia “às antigas bruxas” (p. 133). A pena consistia em cegá-lo,
mas antes disso quiseram castigá-lo, submetendo-o a um ritual de iniciação de
uma tribo índia chamado O-kee-pa.
Este ritual consistia (como se refere num parágrafo em itálico, provavelmente
uma citação de Peter Sloterdijk) em retalhar as costas e o peito do “futuro
guerreiro” (p. 136) com uma “faca de serrilha”, nos quais se enfiavam “espetos
de madeira”, aos quais se uniam “correias fortes presas à trave da tenda, o que
permitia içar do chão o iniciado, a cujas pernas eram ligados pesos que
aumentavam a sua agonia” (idem). Este
ritual sádico não terminava aqui: “Depois o prisioneiro era feito girar até
perder totalmente a consciência” (idem).
O corpo do Homem-do-mau-olhado, como o do iniciado índio, deveria resistir à
força que puxa para cima e aos pesos que atraem para baixo: “Se o
Homem-do-mau-olhado resistir a estas duas forças ao mesmo tempo, merece ser
aceite pelos outros homens como um dos seus” (idem). Talvez viver seja um pouco isto: resistir aos pesos, às
desgraças, que puxam para baixo, ao mesmo tempo que devemos resistir às fugas
do mundo que nos projetam para o alto, que, no limite, nos fazem planar em vez
de existir. Viver é procurar um equilíbrio entre estas duas forças, mantendo
ativa a lucidez e vivo o desejo. O Homem-do-mau-olhado sobrevive a esta
tortura, e ainda a uma outra, que consistia em correr em círculos, até à
exaustão, com os pulsos presos a cordas ligadas a uma estaca de madeira,
“exactamente como se faz a um cavalo que se quer domar” (p. 139). Estes rituais
visam domesticar o instintivo e forte em cada um. O Homem-do-mau-olhado
sucumbe, “está domado, sem consciência, com feridas por todo o corpo” (idem). Depois da tortura, o Homem-do-mau-olhado,
cego, amansa, casa e tem filhos. Podemos ler este episódio como uma parte da investigação
de longo curso levada a cabo no território textual de Gonçalo M. Tavares sobre a
perversidade dos mecanismos aperfeiçoadores do humano.
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