6.1.17

Ler

Como ler? 

Letra a letra, sílaba a sílaba. Assim lêem as crianças. E os poetas, alguns.

Mas ler nem sempre é isso. Ler é não ver o rio Tejo, é ver as conquistas, as naus, e o mais. Ler é um desvio, como o olhar. É olhar para outro lado, uma actividade vesga. Não somos tão bons observadores como as crianças. Desaprendemos essa objectividade. O nosso olhar erra.

Quem lê convoca o que já sabe. Ligar é importante. Tudo parece ligado com tudo. Mas tudo, ao mesmo tempo, está desligado de tudo.

Quando leio isto:

Maria Bloom estava apaixonada e, como na inclinação de um caminho, os seus seios e a sua boca inclinavam-se para o desejo. Certas coisas invisíveis vêem-se (A perna esquerda de Paris, Gonçalo M. Tavares),

não releio nenhum outro livro. O meu desvio é outro. Só faço uma ligação com a adolescência, quando o desejo se insinuou, pela primeira vez, na inclinação dos seios e da boca das raparigas. E abria-se aí uma promessa infinda de felicidade (a felicidade tem de ser eterna, senão não é nada, e não é preciso sermos gregos para percebê-lo), o mundo era uma tarde de beijos e excitação; era um verão que, por direito, jamais acabaria. Sabíamos reconhecer o desejo, sem ninguém no-lo ter ensinado; pois certas coisas invisíveis, coisas que outros sentem, vêem-se.

Por isso ler é uma actividade interessante; uma errância que nem sempre o leitor controla. O texto autoriza a errância; é como um filho que, depois de ter saído da maternidade, se afasta dos pais e vai à sua vida.



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