Que contemplavam embasbacados o fogo de
artifício. Sobre George Romero, o que melhor foi escrito em português (pelo
menos) julgo terem sido as páginas de Américo Lindeza Diogo. Num ensaio em que
também se fala sobre Lucio Fulci ou Dario Argento.
Eis a parte final desse ensaio publicado há
uns anos na Diacrítica sobre o marxista Land of the dead: exercício desconstructivo da
ideologia do estético, a pertença a uma comunidade orgânica, unida em
sensibilidade pelo belo kantiano.
«Os «fétidos» têm uma relação especial com o fogo de artifício. Não
conseguem não olhar. Para facilitar as incursões em busca de alimentos e de
bens, os minutemen usam o fogo de
artifício. Os zombies ficam
enlevados, a mirar ao alto aquelas flores do transcendente, desligado o motor
do apetite e sem cuidados de sobrevivência. É assim que numa grande festa de cowboys bêbedos, os mercenários de Cholo
entram pela rua principal. Primeiro, gritos, risadas, disparos a esmo,
cavalgada; depois, tiro ao alvo, que é boneco.
Os «fétidos» acreditam na arte, e talvez mais do que o fetichista
acredita no seu objecto de favor. Os espectadores de cinema, e
caracteristicamente deste tipo de cinema, são notoriamente semelhantes aos
«fétidos». Gore ajudando, o cinema
será tão apparition (cf. Adorno, Teoria estética) como o fogo de
artifício que maravilha os «fétidos». O fogo de artifício (que se abre de pura
adequação a ficar-se olhando, e logo após se extingue) e o cinema (que continua
a atracção que fora na raiz, e, quando continue, não consente que se sinta o
tempo passar) serão eventos empíricos porque surgem no negrume, não provocados,
calculados ou intencionados por quem olha – e ambos, a seu modo, transferências
para uma luz-no-escuro do peso da empiria,
que o elimina, sendo completa a alquimia pela «efemeridade». Terror cinemático
e flores celestes conseguem a proeza duvidosa de uma arte cívica, criadora de
uma comunidade que é unanimidade contemplativa, a vários respeitos
desinteressada, em que se está à mercê de algum belo, e, finalmente, se fica à
mercê. Sem reacção, expostos e república (vêm para a rua, que é demos), os «fétidos» são agora um alvo
fácil de abater. A cena é «lírica» (ou «pungente», ou «sentimental»), graças à
ingenuidade dos mortos-vivos conduzidos ao despropósito da atitude pastoral num
mundo em guerra. Os «fétidos» são crianças grandes ou adultos retardados (uma
personagem dos humanos, um tanto débil mental, tem no filme a função, entre
outras, de estabelecer e substanciar esta comparação). É justamente quando se
entregam à contemplação estética que os zombies
fazem deveras jus ao nome.
Esta aparição da arte pelos derrelictos da arte é singularmente
catastrófica. Aqueles que sobrevivem mortos no instante eterno em que deixaram
de ser, e que levam consigo os restos de uma identidade e de uma teleologia,
significando tal obsolescência que agora são ou oprimidos, ou «poetas», ou
«poéticos» (o funcionário com a pasta, a cheerleader
de mini-saia, o magarefe com o cutelo, o que foi às compras com o carrinho de
super-mercado, o empregado do posto de gasolina com o fato-macaco do ofício, a
estudante universitária, etc.), não são apenas imitação da vida, porém ainda
imitação da arte pela espiritualização dela, posto seja isto circo e
luminárias. A enumeração caótica que arregimentaria porventura um belo por
negação da função (e a geringonça é mais Lautréamont do que a reunião do
guarda-chuva e da máquina de costura na mesa de anatomia!) fica regimento do belo espiritual, se não é
que imitam todos, como estrelas, as lágrimas de artifício. Olham o céu acima,
boca aberta, bem kantistas; a velha é menos deste mundo, a despegar-se do corpo
pelo pescoço; e o que ficou por acidente reduzido à cabeça abandonou de todo os
baixos corporais, que serão prosa. A cheerleader
protagoniza o mais convincente dos instantes florais, quando é abatida pela
lança do cavaleiro motard. É graça, e
pura quanto mais macabra e mecânica. A imagem é do ballet de marionetas (Kleist) e de boneca de Quebra-Nozes; pés e braços para fora, segue com a corda toda;
ferida na fronte, como um pino, cai rodopiando; e no rodopio da queda recupera
da força externa que a tombou o ponto fixo que é a sua motivação interna.
Com intermitências de perplexidade e muito esforço mental, o líder
que surgiu desta «comunidade inconfessável» – negro como fora o daquela que se
defendia contra os zombies em Night of the Living Dead – descobre a
armadilha do belo que sacia inteiramente os que transformou em anorécticos;
inconformado com a passividade do seu «povo», vai derrubando os estetas
expostos, um por um.
Compreender o belo é recusar o belo; bem compreendido, e recusado,
o belo revela ser o poder que se escondeu num mistério para ser mais poder. A
arte compreende-se, quando se rejeita, como promessa do que não era. O
incidente que vai ser lição é curioso. Ao agarrar um dos seus pela cabeça, o
líder acaba por ficar com esta na mão. Apesar de o que aconteceu ser extremo
pelo corte, a cabeça, que o não sente, continua a fixar os foguetes de
lágrimas, infinitamente apaziguada e siderada pelo belo. O chefe olha para ela,
e depois para o que ela não consegue deixar de continuar olhando. A rejeição é
brutal e a acção consubstancia um desprezo. A cabeça é atirada para a valeta,
como uma coisa abjectamente simbiótica da Coisa Materna. Depois, é esborrachada
com a bota. Apagado o efeito e a causa no efeito, o chefe acabou de definir o
seu «povo» (só há política por limitação da suposta felicidade infinita). Enche
o peito de ar, inclina-se para trás, ergue a cabeça e lança o seu grito de
desafio ao mistério ou ao nada.
Com alguma absolvição política, a tradução de Tarzan (Krig-Ha, Bandolo!) parece ser o instante
passavelmente declarativo em que a arte é crítica da arte. A arte que é crítica
da arte retém num nó de catástrofe a apparition,
que é grito, e a espiritualização, que é a flor de fogo infamada e desafiada –
o transcendente, que é escrita do paraíso, e a sucata histórica, que é imagem
de Tarzan. A reposição da mentira da arte assinala o começo da acção (pois até
aí reagia-se), que consiste na deslocação da acção para começo. Decisão na
ignorância, mas porventura na esperança, a acção torna possível e faz
acontecer. Assim os «fétidos», que sempre estacaram diante da água, eliminam o
impossível, atravessam, atacam a cidade dos humanos e desencadeiam uma
revolução que põe fim aos privilégios.
O subtexto «marxista» é notório. A recusa do céu conduz à herança
da terra. Todavia, se o povo dos humanos parece ir fundar uma comunidade urbana
assente sobre a partilha igualitária dos bens, os «fétidos» que foram os seus
libertadores inintencionais acedem a uma outra condição. Estes descendentes de
Caim serão nómadas; vaguearão sobre a terra sem lugar realmente seu; serão
indiferentes às noções de propriedade. E são agora festa cívica e 4th of july os foguetes que surgem no
céu enquanto os minutemen
sobreviventes partem para o Canadá.»
O ensaio encontra-se aqui na íntegra, e intitula-se, já agora, «Estética, política: os mortos-vivos».
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