19.10.15

Do imundo

Lemos muita coisa, mas é como se não lêssemos. Zola, Céline, Almada, Joyce, Bataille, Michaux, Artaud, Genet, Pasolini, Gombrowicz, Burroughs, Luiz Pacheco, só valem para dizer que os lemos. Quando se trata de nomear o feio, não se pode, é obedecer. Não é. Obedecer começa nas palavras escolhidas, na vigilância maníaca, no que não se pode dizer. Talvez seja um artifício hercúleo para alguns usar certa linguagem. Para mim não, o argot, língua suja, faz parte da minha infância, faz parte da minha adolescência, só a partir dos 18 encontrei outras coisas - a literatura. Talvez porque aquilo era violência a mais, a violência provocada pela exclusão, e queria afastar-me dela, porque queria fugir para outras palavras. E só mais tarde ainda pude entender que a literatura afinal necessitava do argot para formular o indizível.
  
O imundo é o contrário do mundo desenhado pelos órgãos e funcionários do poder. Imundos são os pobres, o seu mau cheiro, a sua falta de maneiras, o argot, o sexo, a droga, o excesso. Foucault demonstrou como isso deve ser reprimido, lançado para longe, como os loucos que iam nas naus para o novo mundo, para purificar o que ficava do lado de cá. Foucault dialogou com o pai e sacerdote Freud, refutou a inexorabilidade da neurose, descoseu as linhas violentas manejadas pelo poder.
   
É por isso que a estética é, afinal, espúria. Resulta da violência, da exclusão. Não perceber a ligação entre os pontos na linguagem silenciada e rasurada pelo poder, é não (querer) ver nada. Violência é o politicamente correcto, é a limpeza, é o ignorar do sujo. É o obnubilar de cisões, dissensos, segregação e ódio. Que está sempre cá em baixo, no terreno, que é aquilo a que vale a pena prestar atenção. Em Auschwitz ouvia-se Wagner, convém lembrar os ébrios, os que acham que o mundo deve ser substituído (à força, revolucionariamente). Os que, afinal, se refugiam do mundo na estética. A estética é uma Índia à mão, tão perto.

Faço um elogio da intolerância. Neste momento, a falta que faz dizer um não veemente a certas ideias.

Os patos têm uma camada de sebo que os torna impermeáveis. Assim alguns lêem mas não absorvem, nem chegaram perto da vida, nem deliraram, ficaram lá em cima, teóricos (ler etimologicamente) enquistados. Depois, com volúpia, vigiam e punem.



Sem comentários:

Enviar um comentário