3.9.15

O que é a cultura europeia?

Um dia, em conversa com uma amiga alemã de uma amiga, falava da riqueza do cinema alemão contemporâneo, de Wim Wenders, de Herzog ou ainda de Fassbinder. Defendia que o cinema europeu era de excelência e que devia ser muito mais exibido na televisão. Do outro lado a resposta foi áspera, esse cinema era «lixo», um «sorvedouro» de dinheiro público. Enfim, é a conversa usual também por cá. Quando falo com alguns amigos turcos sobre cinema turco, falo quase sempre sozinho, ninguém conhece os filmes - dos cineastas conhecem o nome, tal como acontece por cá. Lembrei-me destes episódios quando lia este passo de Bernard Stiegler, no livro Descrença e descrédito (editado pela Vendaval):
  
«Como analisei noutras obras, os Estados Unidos compreenderam, muito cedo, o poder dos objectos temporais audiovisuais porque foram confrontados com a questão da adopção como mais nenhuma outra nação: desenvolveram uma política industrial de projecção da imagem do nós americano, que foi também uma política comercial da imagem do eu que é consumidor - do qual a América inventou assim o modelo. Muito antes da sua moeda e do seu exército, o poder americano reside na força das imagens de Hollywood e dos programas computacionais que ela concebe, na sua capacidade industrial de produzir símbolos novos em torno dos quais se constituem níveis de vida. E é porque, na guerra económica mundial, a conquista dos mercados se tornou mais determinante do que a melhoria da produtividade (o que Marx não podia ver e o que o marxismo não compreendeu) que a cultura se torna, nos Estados Unidos, a indústria denunciada por Horkheimer e Adorno, e que o desenvolvimento deste sector económico se torna uma prioridade tal que o capitalismo se desenvolve agora como hiperindústria cultural.»

Frescobaldi, Sokurov, Piero della Francesca, Fielding, Benn, Ariosto, D. Diniz, Duchamp, Cervantes, Espinoza, Rachmaninoff, Beethoven, Nietzsche, Boulez, Pina Bausch, Brodskii, Shakespeare, Riemenschneider, Kierkegaard, Mozart, Pasolini, Goethe, Miguel Ângelo, Santa Teresa de Ávila, Rousseau, Bernini, Camões, Homero, Aristóteles, Virginia Woolf, Averróis, Ficino, Deleuze. Não é isto a cultura europeia. Nem os valores europeus são a liberdade, a razão, o trabalho, a mobilização, a igualdade, a democracia (aliás, continuar a dizê-lo como se nada fosse é ignorar o século XX). A cultura europeia é o capitalismo, o seu símbolo, Hollywood, fulcral para a conquista dos mercados, e máquinas como a televisão, o computador, o youtube, o facebook, o google. É fundamentalmente isto (com uns resquícios de cristianismo e uns pozinhos de budismo new age).



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