Volvida uma década sensivelmente, volta Bertolucci. Desta feita, com Eu
e tu, de 2012, após Sonhadores, de 2003. É possível fazer algumas
aproximações entre os dois filmes.
Sonhadores
foi rodado em França, Eu e tu em Itália. Em tempos diferentes, contudo:
o primeiro, em 1968; o segundo, hoje.
Em ambos, os protagonistas são um casal de irmãos. Com
nuances: no caso de Eu e tu, trata-se de meios-irmãos. Ambos os casais
pertencentes a famílias de classe média-alta. No caso de Sonhadores,
determinadas aspirações (sexuais, políticas, existenciais) são as de uma classe
em ascensão. Entra um terceiro elemento na equação: um americano, de corpo
rígido. Esta ordem – ameaçadora, até – parece, em Eu e tu, provir de
dentro, já, de uma classe consolidada.
Toda a energia de 68 se perdeu. Sobra, da classe
média, desilusão, inação, apatia. É claro que estas características pertencem
também às classes altas propriamente ditas. A diferença está no poder que as
possa esbater – ou mesmo dirimir.
Claro que a revolução sexual fracassou. Claro que, mais
cedo ou mais tarde, a classe média incorporaria a disciplina da alta burguesia.
Como disse Foucault: primeiro, testaram-na em si, com repressão e exercício,
para depois a imporem aos outros.
O adolescente de Eu
e tu – Lorenzo – decide enclausurar-se numa cave, em vez de ir em viagem
com os colegas de escola. Os hábitos burgueses – usemos a palavra – são
extremamente aborrecidos. O gesto de Lorenzo é corajoso. Para além disso, o
esconjuro da solidão é abominável. Esconde Lorenzo um fascínio por formigas. Isto
é, neste individualismo acerbo germina certa nostalgia da comunidade, eis o
paradoxo, consternação por não haver um lugar para cada um.
Porém, autossuficiência é bem a cara
altiva do tempo. A irmã é fotógrafa. A fotografia é, de resto, uma arte de
classe média: comprar uma Nikon converte imediatamente o comprador em artista.
Enclausuramentos diferentes: os irmãos de Sonhadores, fecham-se em casa para expandir o desejo entre quatro paredes, longe de olhares indiscretos, engendrando-se uma espécie de micro-falanstério. O desejo, exteriormente, assume uma forma política. Contudo, a par desta leitura política, há a leitura psicanalítica: a casa é o útero de onde os dois gémeos jamais saíram. No caso de Eu e tu, a cave é o útero donde esta classe média-alta havia saído. A alimentação de Lorenzo lá, de resto, pouco difere da alimentação de muitos miúdos de famílias operárias, não sujeitas a dietéticas. A leitura política, em Eu e tu: na cave não há a futilidade de classe, exclusivamente dedicada de resto a uma gestão sentimental de telenovela (o que, invariavelmente, separa os irmãos, não mais gémeos, antes meios-irmãos). Não sei se Bertolucci não encontrará no esvaziamento político a causa para a desagregação social – é possível. A erosão das causas colectivas atomizou a comunidade.
Outrora, sonhadores. Hoje, eu e tu. O sonho
desvaneceu-se: os dois filmes dizem-no. Sobram eu e tu: sujeitos reduzidos ao deítico pessoal (que estabelece coordenadas espácio-temporais),
presenças, entidades psíquicas, corpos. Esvaziados de política, encurralados em
si próprios, sem algum sonho que os projete para um além-de-si. Claro que este
abandono a que estamos votados não é necessariamente mau. Somos confrontados
com o vazio que precede a decisão: Olivia: drogo-me ou não? Lorenzo: vou ou não
vou ao passeio? É possível decidi-lo – não há nenhum Mao. O vazio contemporâneo
também é este: o abandono à liberdade – Deus está morto. Porém, poder-me-ão
dizer, também é por aqui que o feroz individualismo respira. Certo. De resto, em Sonhadores, o elemento mais sensato – mais ciente do embuste da revolução maoísta que,
ao invés de trazer mais liberdade, a cerceava – é americano. E é, também ele, o
único que (ainda) acredita no amor. A Europa, de facto, está cansada.
(Talvez um dia pegue nas pontas e as cosa.)
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