Quando penso na minha primeira infância, parece-me que nessa
altura o dentro e o fora mal se distinguiam. Se gatinhava em direcção a alguma
coisa, ela vinha ao meu encontro, voando; e quando acontecia alguma coisa
importante para nós, não éramos só nós que ficávamos excitados, as próprias
coisas começavam a vibrar. Não estou a dizer que éramos mais felizes do que
fomos depois. Ainda não nos possuíamos a nós mesmos; no fundo, ainda não
existíamos, a nossa condição de pessoa ainda não se distinguia da do mundo.
Parece estranho, mas é verdade: os nossos sentimentos, as nossas vontades, e
mesmo nós próprios ainda não estávamos inteiramente em nós. Mais estranho ainda
seria eu dizer: ainda não nos tínhamos afastado suficientemente de nós
próprios. De facto, se hoje, num momento em que julgas estar de posse de ti
própria, te perguntares excepcionalmente quem és, farás esta descoberta.
Ver-te-ás sempre a partir de fora, como uma coisa. Apercebes-te de que numa
ocasião ficas irritada e noutra triste, como um casaco que ora está molhado ora
é quente. A mais atenta observação permitir-te-á, quando muito, descortinar as
motivações dos teus actos, mas nunca penetrar fundo em ti. Faças o que fizeres,
ficas fora de ti própria – e as excepções são apenas aqueles poucos momentos em
que todos dirão que estás fora de ti. A compensação encontrámo-la, já adultos,
ao chegarmos ao ponto de podermos pensar, em cada ocasião e porque isso nos
diverte: «eu sou». Vês um carro, e de algum modo vês também, como uma sombra:
«Eu estou a ver um carro.» Amas ou estás triste, e vês que estás assim. Mas, em
sentido estrito, nem o carro, nem a tua tristeza ou o teu amor ou tu própria
estão inteiramente aí. Nada está da mesma maneira aí, inteiro, como esteve na
infância. Pelo contrário, tudo aquilo em que tocas, até ao mais íntimo de ti,
fica como que petrificado assim que chegas a ser uma «personalidade»; e o que
resta, envolto numa existência totalmente exterior, é apenas o fio de névoa
espectral da autoconsciência e de um indistinto amor-próprio.
Robert Musil, O homem sem qualidades, vol. II
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