27.11.15

Leituras à sexta

1. Destaque para a entrevista a um dos melhores romancistas europeus, Javier Marías. É uma espécie de Orson Welles da literatura, usa o romance para ler Shakespeare. O romance é o género escolhido para interpretar o mais importante dramaturgo de sempre, isto é, a narrativa, para além de ler o mundo, funciona de alguma maneira como um ensaio literário. No caso, em torno destas palavras de Hamlet: «Thus bad begins and worse remains behind».

Viver enganado (melhor assim, às vezes)

«Muriel diz algo muito claro: quando um engano dura muito, até ao ponto de condicionar uma vida, o pior que se pode fazer é aclarar esse engano, porque aquilo que se viveu - enganado - já não se pode apagar, e de repente já não se sabe o que fazer com isso.»

Narrador na primeira pessoa (olhar zarolho)

«A vantagem principal é que uma voz na primeira pessoa resulta mais credível, mais persuasiva, e, por ser mais fragmentária, parece-se sempre mais com o que todos sentimos ao longo da vida, com o modo como vemos a realidade. Sempre incompleta e fragmentária, sempre com um olhar zarolho, quase sempre sem certezas.»

Estar a par do que se publica (em rigor, é isto)

«O meu tempo de 'andar em dia' já passou. Tentei durante décadas, e perde-se demasiado tempo: encontra-se um texto que vale a pena em vinte, e há clássicos que ainda não li ou que gostaria de ler.»



2. Realce ainda para a crónica de António Guerreiro, «E tudo o resto é jornalismo». Para além de decompor a puerilidade das estratégias de marketing do Expresso na promoção do livro de Clara Ferreira Alves, diz o seguinte:

«Para responder a esta pergunta, tenhamos em conta o exemplo do Expresso, neste episódio da publicitação do romance da Clara Ferreira Alves: o jornal foi incapaz de pensar que talvez estivesse a ser contraproducente e, embora não o categorizando, pressupôs a existência de um leitor inculto, acrítico e não autónomo. No entanto, ele imagina que se dirige em primeiro lugar às elites culturais e secundariamente a quem só procura algum entretenimento. Este desfasamento, longe de ser exclusivo do Expresso, é muito comum: há um populismo cultural praticado com boa consciência mesmo por aqueles que se manifestam contra todo os populismos políticos. Ora, o que acontece com as páginas culturais de uma ou outra publicação não seria grave se não fosse, em maior ou menor grau, uma regra geral: até um jornal como o Jornal de Letras e uma revista como a Ler, apesar dos respectivos nomes, são incapazes de imaginar um público letrado e uma verdadeira esfera pública literária. Na melhor das hipóteses, dão uma no cravo outra na ferradura e não servem ninguém. E, o que é pior, não fazem nem saem de cima.»

A quem se dirigem estas publicações? E o que fazem senão infantilizar o leitor e dar-lhe de comer o que obedece a uma lógica quase estritamente económico-política? Ocorre-me um passo de Ferdydurke, romance de Witold Gombrowicz: «Só com uma selecção criteriosa conseguiremos industriar o mundo inteiro na infantilização.» Tutumizemos, pois.



3. Governo de esquerda, um bom resumo: «O palácio encheu-se de gente normal.»



4. «As crianças andaram três anos a estudar para nada». Depois, quando se motiva os alunos para a leitura, eles sacam logo da pistola: «para quê? sai no teste?». Feito o exame, esquece-se tudo, pode inferir-se, realizá-lo com proveito é um fim em si mesmo (a aprendizagem não serve a formação cívica, pessoal, filosófica, científica...). É a fábrica das salsichas dos Pink Floyd, alimentada a medo. Escreveu Pasolini, em Afabulação (reportando-se aos velhos burgueses e aos novos revolucionários): 

«São todos de
uma mesma raça: a raça que avalia o que se faz
pela sua utilidade. Se alguém, rindo ou chorando,
num mundo onde não se pode rir
e não se deve chorar, é, para eles, um empecilho,
sabes o que dizem? Dizem assim: Para que serve?»



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