2.8.15

Por falar em Roland Barthes

Imaginem que havia um Roland Barthes português praticamente ignoto dos que com ele não privam e dos outros que não deambulam pelos corredores, a cada dia mais esconsos, da academia. Alguém com uma obra ensaística vasta, erudita e muito mais criativa do que a maioria do que hoje é editado como ficção ou poesia. Fala-se do ensaio como obra de pensamento, conceptual e sistemática. O que há de mais teórico e escolar são categorizações deste tipo: o ensaio pensa, o romance narra, a poesia sente, etc.. A doxa não concebe que ensaios sejam altamente criativos transportando ademais muita erudição. Então se esses forem extraordinariamente escritos (o que não significa normativos, bem-comportados, mas arrojados, exercícios de um estrangeiro na sua língua, cheios de pirotecnia verbal com disrupções sintácticas e semânticas, em estilos diferentes). E some-se, last but not least, a forma como Américo Lindeza Diogo montou uma máquina de guerra para combater a territorialidade da instituição literária e seus salamaleques e gossips e bom-gosto e coço-te-agora-o-piolho-depois-coças-mo-tu e o que Gilles Deleuze dizia ser o falar sujo das viagens e das conferências; em suma, de muito do que sequestra a literatura. Máquina de guerra essa que poderia ter o singelo nome de ética, ou coragem de se ser aquilo que se é.

Por tudo isto, não receio dizer que Américo Lindeza Diogo é o melhor ensaísta literário português de sempre. É, por conseguinte, um dos nomes mais relevantes da história da literatura portuguesa (entendendo-a de forma aberrante, isto é, com terminus ad quo no século XII) e um dos mais brilhantes intelectuais portugueses (podem estar seguros de que não vão deixar os estudos de matemática, ou de outra coisa qualquer, como fez Ulrich, depois de terem lido isto).

Mas pouca gente, sobretudo nas letras, quer saber, a morte segue o circo. Como disse Julien Sorel — «Um bom raciocínio ofende».



Faço copy-paste das respostas de Américo Lindeza Diogo, precedidas por uma breve apresentação, ao inquérito sobre a Coca-cola, uma iniciativa seguida durante algum tempo pela Angelus Novus.



Américo António Lindeza Diogo é Professor Catedrático da Universidade do Minho. Com doutoramento sobre as cantigas de escárnio e mal-dizer, tem obra vasta sobre praticamente todos os períodos da literatura portuguesa, com especial destaque para o período medieval e o moderno e para autores como Eça, Pessoa, Carlos de Oliveira, Herberto Helder, António Franco Alexandre, Adília Lopes, entre outros. Publicou ainda ensaios e livros sobre questões de teoria e estética, literatura infantil e literatura brasileira.

Na Angelus Novus, de que foi co-fundador, publicou livros sobre Clarice Lispector, Sá de Miranda, Almeida Garrett ou Fernando Pessoa, editou uma antologia da poesia trovadoresca, e foi co-director de Zentralpark e de Inimigo Rumor.


P. Gosta de Coca-Cola? Numa escala de 0 a 5, em que 5 significa Muitíssimo, 4 Muito, 3 Assim-assim, 2 Gosto pouco, 1 Não gosto, e 0 Detesto, que classificação dá à Coca-Cola?
R. Assim-assim. Em resistência cultural, comme ci, comme ça.

P. A sua opinião sobre a Coca-Cola mantém-se, desde a primeira vez que a provou, ou alterou-se?
R. A mesma, e assim-assim o consumo. A coca-cola não satisfaz e a gente repete. É humana, estilo realismo do capital. A única bebida fria que satisfaz é o leite. O leite não é humano, mas mãe.

P. Qual destas duas frases prefere? E porquê? (i) «A água suja do imperialismo»; (ii) «Os filhos de Marx e da Coca-Cola».
R. «Os filhos de Marx e da Coca-Cola». A expressão designa uma porção razoável do enunciador de «A água suja do imperialismo».

P. Como reescreveria hoje a última frase: «Os filhos de Marx e da Coca-Cola»?
R. «Os filhos da puta»? Caso em que a voz do pai Marx serve de unguento para os arranhões da voz da bitch

P. Comente brevemente o poema de Décio Pignatari sobre a Coca-Cola.
R. O poema é revelações por comutação de letras e formas, ora seja, o poema é crítica ideológica esperta. O horizontal normal sem ênfase (beba coca cola) é descaro e pressão injuntiva na vertical (beba babe / beba babe / caco cola); a coca não tem valor (é caco em si); o ninguém que disse o beba e o ninguém a quem o beba se dirige ocultavam um interesse dito na língua do interesse, imperial (babe). Acresce, em polissémico, que a gente bebe até babar.

As linhas horizontais também contam. A segunda põe de face a cola e o súbdito do império (babe). A terceira dá a dependência pelo vício (beba coca). A quarta autoriza o verbo babar e troca as voltas à primeira. Quem ‘bebe coca cola’ acaba junkie sem dignidade. É um caco que baba cola. Assim, o normal convite (beba coca cola) revela ser um sinistro «babe cola, caco».
Autorizada pela combinatória, a cloaca final revela que o poema era um comentário — vá lá, tornado vívido — àquela grande frase «A água suja do imperialismo».
 





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