Somos uma espécie obsoleta. Na verdade, um epílogo. A futura
raça de humanos agradecer-nos-á a cordial entrega ao suicídio, outro nome
afinal para a substituição de matéria inútil – este corpo, que se excita e é
mole. Somos seres limitados; acedemos, por vezes, à continuidade, como por
exemplo nessa pequena morte que é engendrada pelo coito: “Ele pôs uma perna
entre as dela, poisou as palmas das mãos sobre o seu ventre e os seus seios;
envolvido em doçura, em calor, estava no princípio do mundo. Adormeceu quase
imediatamente.” (p. 225) É curta, com o seu quê de epifânica, a submersão nessa
tepidez muito pouco humana – mãe. Nascer é já uma separação, contudo. Superar a
individualidade implicará também obstar a futuros nascimentos. Resolvido o
problema da morte, restará o problema do nascimento, portanto. Acreditamos,
desta feita, que a carne não nos serve, que a mortalidade não nos serve. Esta
imagem da imortalidade vem-nos perseguindo e com paixão nos entregámos a ela
durante séculos. Hoje, o culto dessa imagem é a mais elevada de sempre: “Os
elementos da consciência contemporânea já não se adaptam à nossa condição
mortal.” (p. 236)
Não sei até que ponto este testemunho não será redundante,
devo dizê-lo. As oitenta páginas de Michel Djerzinski terão sido, talvez, a
melhor carta de despedida que a humanidade alguma vez pôde conceber. De facto,
o seu trabalho diz muito. Diz, por exemplo, de um século XX que, de forma
tortuosa, se entregou ao trabalho sem hesitação, com uma paixão mística,
arrisco dizê-lo, isto apesar de franjas não negligenciáveis da população
ocidental estarem desempregadas. Essa entrega resulta de uma descrença
inexorável no amor – no fundo, na possibilidade da ligação e do bem: “O amor
liga, e liga para sempre. A prática do bem é uma ligação, a prática do mal uma
desligação. A separação é o outro nome do mal; é, igualmente, o outro nome da
mentira” (p. 287). Depois das duas grandes guerras do século XX, as mulheres e
os homens procuraram o amor de forma sôfrega, umas vezes honesta, outras cinicamente.
A revolução sexual procurada pela geração nascida após 1945 fracassou: “Era
pouco verosímil, hoje, que uma rapariga de dezassete anos pudesse dar provas de
tal ingenuidade; era sobretudo pouco verosímil, hoje, que uma rapariga de
dezassete anos atribuísse uma tal importância ao amor” (p. 267). Todavia, toda a
vivência do amor é interrompida pela morte. No fundo, só quando formos
proprietários do nosso corpo é que poderemos aceder a uma experiência plena do
amor. Esse dia virá, estou certo. Desse momento em diante, deixaremos de sentir
o outro como parte constitutiva de nós. O corpo deixará, por conseguinte, de
ser outro; já não funcionará – adoecendo, por exemplo – à nossa revelia. Aliás,
já há máquinas que nos substituem órgãos, máquinas essas que permitem salvar os
nossos pais, os nossos avós, aqueles que amamos. Na ânsia de dominar o corpo,
entregámo-lo ao outro, à máquina. Talvez esta seja, afinal, nossa aliada. Já
substituímos órgãos, isto é, partes da carne – não é nada de invulgar.
Falta-nos, todavia, substituir o todo, o corpo. Depois, a espécie. Pode ser que
esta substituição solucione a nossa propensão natural para a violência, para
fazermos jus às palavras de Thomes Hobbes, que dizia que o homem era o lobo do
homem.
Num livro denominado “Extensão do domínio da luta”, já havia
sido dito que somos todos reféns de uma experiência amorosa adolescente. A
infância, essa, apesar de eterna aos olhos da criança, é efémera. No entanto,
sublinhe-se que não há nada mais dócil do que uma criança entre os 7 e os 12
anos: um ser disponível que coloca poucas, ou nenhumas, condições para amar e
ser amado. A maioria de nós, como ia dizendo, é refém de uma experiência
adolescente, durante a qual entendemos que o mundo é uma arena onde todos lutam
contra todos: “A maior parte dos rapazes, sobretudo quando reunidos em bando,
aspiram a infligir humilhações e torturas aos seres mais fracos. No início da
adolescência, em particular, a sua ferocidade atinge proporções inauditas.” (p.
49) Mas não só: durante esse período, sentimos a inexorabilidade do desejo
sexual, que conspurca um terno e honesto desejo de ligação: “Houvera no
rapazinho alguma coisa de muito puro e de muito doce, de anterior a toda a
sexualidade, a toda a consumação erótica. Houvera um simples desejo de tocar um
corpo carinhoso, de se apertar entre dois braços carinhosos. A ternura é
anterior à sedução, é por isso que é tão difícil desesperar.” (p. 57)
Substituirmo-nos é a derradeira hipótese ascética – eis uma
formulação inverosímil, porém certeira: “A solução dos utopistas – de Platão a
Huxley, passando por Fourier – consiste em extinguir o desejo e os sofrimentos
a ele associados por meio da satisfação imediata. Em contrapartida, a sociedade
erótico-publicitária em que vivemos ocupa-se em organizar o desejo em
proporções inéditas, ao mesmo que mantém a satisfação no domínio da esfera
privada. Para que a sociedade funcione, para que a competição continue, é
preciso que o desejo cresça, alastre e devore a vida dos homens.” (p. 157) A
substituição da espécie soluciona também o desencanto de Rousseau e de
Chateaubriand, cujas obras eram avidamente devoradas por Bruno Clément depois
de excitação erótica (excitação seguida de decepção, tragicamente). Excitação
que prolifera em sociedades assentes numa classe média que não luta pela
sobrevivência. Quem passa fome ou tem a morte diante de si coloca o desejo em
segundo plano. Mas bom: procurar redenção numa matéria tão precária como o
corpo não é sensato, poderias dizer. Como nos velhos manuais de teologia, ainda
pode ser o corpo a salvar-nos: “O objetivo principal da sua vida fora sexual;
já não era possível mudá-lo, sabia-o agora. Nisso, Bruno era representativo da
sua época.” (p. 67)
É esta uma espécie de carta de despedida de uma espécie. Toda
a modernidade parece ser um obituário contínuo, um adeus endereçado às últimas
coisas, configurando-se pois uma visão toldada pelo fim – e pelo depois que se
lhe seguirá. Presumo que, no futuro, depois de extinta a espécie a que
pertenço, ainda se continuarão a escrever coisas como livros. Este veneno
sedutor, que invade e devasta as nossas mais entrincheiradas certezas,
continuará a ser vertido, assim. Dar-se-á até o caso de algum pós-humano narrar
as vivências de dois irmãos humanos que viveram no Ocidente durante o final do
século XX. É possível, inclusivamente, que o livro tenha por título “As
partículas elementares” e que tenha sido assinado por Michel Houellebecq. Não
sei, contudo, se continuarão a ser elaborados comentários literários duvidosos.
Todos são duvidosos, na verdade; mais, todos estão errados. E ainda bem,
diga-se. Não creio é que o futuro tolere o erro, o desvio, o imprevisível – com
que hoje, neste fim antes do fim, dificilmente convivemos. As sínteses activas
de Michel Djerzinski, esse ilustre cientista que por bem ousou defender a nossa
substituição como espécie, comprovam-no à saciedade: “O universo humano – ele
começava a dar-se conta do facto – era dececionante, cheio de angústia e
amargura. As equações matemáticas traziam-lhe alegrias serenas e vivas.” (p.
70)
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