12.4.13

Breves notas sobre Miguel Martins


Os textos de Miguel Martins, como já o disse Rosa Maria Martelo, são intimistas, concedem-nos uma espécie de apresentação do rosto, estão próximos de um registo autobiográfico. Tentam tornar representável o que resiste ao apaziguamento da representação (o tema da auto-representação na obra de Miguel Martins mereceria por certo um estudo mais extenso). Nos termos do próprio autor, diria que a escrita não conhece a «paz subsequente», como sucede com o «foder» (texto I de 1 Homem Sozinho, p. 7). Possibilita o acesso a uma «orla de sentido», como referiu Jean-Luc Nancy, que torne um pouco menos doloroso lidar com o que de insondável sejamos. A escrita é o que persiste, apesar de tudo.
Dos textos de Miguel Martins avulta uma imagem aproximada do «escritor maldito» socialmente desvinculado. Noites sem descanso, atormentadas pela tv, pela presença apenas espacialmente próxima dos vizinhos, pelas lembranças, por uma incerta dor que vai rodando. E por vezes pela escrita, que se solta de um fôlego sem folga, vorazmente, instantaneamente, contando com uma vigilância permissiva da razão (Fôlego sem folga, publicado pela Língua Morta, recorre a um estilo mais solto de que outros livros do autor, sublinhe-se). Nem por isso é erigido um altar à literatura. Sucede que os princípios da arte autónoma são desde logo colocados em causa pelo contrato de leitura proposto, dado que os textos contêm diversos biografemas. Sente-se isso sim um clamor pela vitalidade de que este mundo não raro carece. A mulher, essa, poderá redimir: «bastam, às vezes, um sorriso, um pestanejar, uma palma da mão suada e quente, um pé-balancé, uma respiração arfante, um hálito, o cheiro alagador de uma menstruação que irrompe pela manhã, um mamilo lactante, uma lágrima» (texto II de 1 Homem Sozinho, p. 8). A vida enquanto momentos de rarefacção entrecortados por epifanias, momentos de puro esplendor proporcionados pela mulher, um ser onde a vida abunda, ao contrário do homem. «Foder», note-se, não é copular (demasiado educado, constrangido e por isso pouco livre), nem fornicar (com sombra de pecado), nem fazer amor (linguagem a roçar o técnico, produtivo), muito menos procriar (em que o fim não está em si mesmo). Foder é libertário, como a escolha do lexema o indicia desde logo. No fundo, também os textos de Miguel Martins clamam por um outro mundo, desejam outro mundo mais livre, pleno e intenso, algo que as vanguardas do início do século XX também reivindicaram. Foder é o que está além do mundo simbólico que nos amansa, que nos vai mantendo num estado sonolento e amorfo. Foder, contrariamente, é o real em bruto, a energia vital indomesticada, que acende em êxtase cada momento de uma existência humana demasiado limitada pela moral, por um conjunto de leis cuja função é moderar o desejo humano, por forma a preservar a ordem social (ah, a neurose).
Aos seres humanos apenas é acessível o prazer momentâneo, não o gozo contínuo. A nossa civilização assenta na actividade útil, na servidão à reprodução ininterrupta de capital e às próteses técnicas de que nos parece difícil ver-nos livres. Somos forçados, no campo do sensível, a reagir imediatamente a uma miríade de estímulos, cada vez mais artificiais. Somos, como o animal, cada vez mais reactivos. Esta civilização assenta no culto do movimento e repudia a contemplação. Contemplar a beleza bem que podia ser o acto mais revolucionário, mais livre, mais humano:


XXI

Todos os dias, a toda a hora, uma após outra, cruzo-me na rua com mulheres que não conheço e nunca conhecerei. Algumas são lindas, outras atraentes, outras aparentam inteligência ou outra característica mental cativante, outras ainda parecem acumular tudo isso. Se, a cada vez que tal sucede, parasse e as parasse, lhes dissesse o que penso e que indícios me fazem pensá-lo (supondo que estivessem dispostas a ouvir-me), levaria uma eternidade a percorrer um quilómetro. Concluo: a vida, esta vida, apressada e inútil, feita de correrias rumo ao vazio, foi esquiçada ao arrepio da beleza e da sua contemplação. A vida é para os brutos. Para os cegos que, como diz o provérbio, não querem ver. A vida é uma moléstia ininterrupta. Ou, se calhar, viver é outra coisa que não isto, é darmo-nos o tempo de parar na rua para dizer às mulheres por que razão são lindas. (Miguel Martins, 1 Homem sozinho, p. 28)


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