Os textos de Miguel Martins,
como já o disse Rosa Maria Martelo, são intimistas, concedem-nos uma espécie de
apresentação do rosto, estão próximos de um registo autobiográfico. Tentam tornar
representável o que resiste ao apaziguamento da representação (o tema da
auto-representação na obra de Miguel Martins mereceria por certo um estudo mais
extenso). Nos termos do próprio autor, diria que a escrita não conhece a «paz
subsequente», como sucede com o «foder» (texto I de 1 Homem Sozinho, p. 7). Possibilita o acesso a uma «orla de
sentido», como referiu Jean-Luc Nancy, que torne um pouco menos doloroso lidar
com o que de insondável sejamos. A escrita é o que persiste, apesar de tudo.
Dos textos de Miguel Martins
avulta uma imagem aproximada do «escritor maldito» socialmente desvinculado.
Noites sem descanso, atormentadas pela tv, pela presença apenas espacialmente
próxima dos vizinhos, pelas lembranças, por uma incerta dor que vai rodando. E por
vezes pela escrita, que se solta de um fôlego sem folga, vorazmente,
instantaneamente, contando com uma vigilância permissiva da razão (Fôlego sem folga, publicado pela Língua
Morta, recorre a um estilo mais solto de que outros livros do autor,
sublinhe-se). Nem por isso é erigido um altar à literatura. Sucede que os princípios
da arte autónoma são desde logo colocados em causa pelo contrato de leitura
proposto, dado que os textos contêm diversos biografemas. Sente-se isso sim um
clamor pela vitalidade de que este mundo não raro carece. A mulher, essa,
poderá redimir: «bastam, às vezes, um sorriso, um pestanejar, uma palma da mão
suada e quente, um pé-balancé, uma respiração arfante, um hálito, o cheiro
alagador de uma menstruação que irrompe pela manhã, um mamilo lactante, uma
lágrima» (texto II de 1 Homem Sozinho,
p. 8). A vida enquanto momentos de rarefacção entrecortados por epifanias,
momentos de puro esplendor proporcionados pela mulher, um ser onde a vida
abunda, ao contrário do homem. «Foder», note-se, não é copular (demasiado
educado, constrangido e por isso pouco livre), nem fornicar (com sombra de
pecado), nem fazer amor (linguagem a roçar o técnico, produtivo), muito menos
procriar (em que o fim não está em si mesmo). Foder é libertário, como a
escolha do lexema o indicia desde logo. No fundo, também os textos de Miguel
Martins clamam por um outro mundo, desejam outro mundo mais livre, pleno e
intenso, algo que as vanguardas do início do século XX também reivindicaram.
Foder é o que está além do mundo simbólico que nos amansa, que nos vai mantendo
num estado sonolento e amorfo. Foder, contrariamente, é o real em bruto, a
energia vital indomesticada, que acende em êxtase cada momento de uma
existência humana demasiado limitada pela moral, por um conjunto de leis cuja
função é moderar o desejo humano, por forma a preservar a ordem social (ah, a
neurose).
Aos seres humanos apenas é
acessível o prazer momentâneo, não o gozo contínuo. A nossa civilização assenta
na actividade útil, na servidão à reprodução ininterrupta de capital e às
próteses técnicas de que nos parece difícil ver-nos livres. Somos forçados, no
campo do sensível, a reagir imediatamente a uma miríade de estímulos, cada vez
mais artificiais. Somos, como o animal, cada vez mais reactivos. Esta
civilização assenta no culto do movimento e repudia a contemplação. Contemplar
a beleza bem que podia ser o acto mais revolucionário, mais livre, mais humano:
XXI
Todos os dias, a toda a hora, uma após outra, cruzo-me na rua com mulheres que não conheço e nunca conhecerei. Algumas são lindas, outras atraentes, outras aparentam inteligência ou outra característica mental cativante, outras ainda parecem acumular tudo isso. Se, a cada vez que tal sucede, parasse e as parasse, lhes dissesse o que penso e que indícios me fazem pensá-lo (supondo que estivessem dispostas a ouvir-me), levaria uma eternidade a percorrer um quilómetro. Concluo: a vida, esta vida, apressada e inútil, feita de correrias rumo ao vazio, foi esquiçada ao arrepio da beleza e da sua contemplação. A vida é para os brutos. Para os cegos que, como diz o provérbio, não querem ver. A vida é uma moléstia ininterrupta. Ou, se calhar, viver é outra coisa que não isto, é darmo-nos o tempo de parar na rua para dizer às mulheres por que razão são lindas. (Miguel Martins, 1 Homem sozinho, p. 28)
Adenda:
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