8.12.25

Dobra implosiva: o modernismo

Quero eu dizer que os seus vapores — a sua presença, o seu modo de presença — vêm mais ao de cimo e que então essa «coisa» não sou «eu» mas a minha «aura» negativa, de que eu constituo o «corpo morto», o suporte compósito, anfíbio. Lembro-me de Lovecraft. Dos monstros do ciclo de Dunwich. Mas não me quero sequer explicar... Lembro-me de que há alguns anos vi um filme com Vincent Price, extraído de um conto de Maupassant: o Horla. Mas também não é isso. Fui fã dos filmes da série-Poe, do Corman, mas também não é bem isso. Aproxima-se mais do Scanners, de Cronenberg, mas, tal como em Aliens, de Ridley Scott (ou The Thing, de Carpenter), é preciso compreender que a «coisa» está lá dentro, mas morta, sem nunca ter explodido. Como se recusasse manifestar-se, ser tão evidentemente monstruosa. Um monstro que dissesse: desisto. Prefiro ser esta «coisa» interior que cada um — neste caso «eu» (?) — traz consigo (ou será «ele» que me traz consigo?). Um «monstro», assim, morto. Consigo e comigo próprio cozido. Um processo, portanto, de reclusão interior: um volvo íntimo, implosivo. Não há histórias que tratem suficientemente disto (talvez o que eu aqui escreva não passe, afinal, do argumento para uma série-B ou para um filme medíocre?!...). Sobretudo, não se trata de uma história de «duplos». Não sou nenhum estudante de Praga. William Wilson não é meu amigo. Não se trata disso. Trata-se, isso sim, da própria impossibilidade do «duplo». Uma espécie de dobra de si, mas ao mesmo tempo ausente, nociva (negativa).

Fernando Guerreiro, A sagrada família

Pés-feridos

Escolher um nome é já escolher um sentido. Todo um programa de sinais, sentidos, numa palavra: um destino. Não refiro, nem vos vou falar de novo de Édipo. Já se sabe que, etimologicamente, esse nome significa «pés-feridos». O que nos remete tanto para um incansável andar — de Édipo pode-se dizer que ele tem o nome (e o destino) inscrito na sola dos pés —, como para o curso desse percurso: o reavivar das marcas e dos sintomas das antigas feridas. No caso de Édipo, os pés não sangrarão de novo, mas, quando ele for suspenso — como um anti-Cristo, na posição invertida —, eles incharão, magoadamente, Mas deixemos Édipo e as suas feridas. É de um nome, hoje, que se trata. Porque o escolhi? E com que intenção? A de adivinhar um projecto — ou a de traçar, antecipar um destino? Trata-se, é claro, do nome do meu filho.
Lembro-me vagamente de o ter lido em Dante. Com efeito, num opúsculo em que defende a poesia românica, em língua vulgar (De vulgari eloquentia), referindo-se ao modo de comunicação dos Anjos, Dante afirma que estes não precisavam sequer de falar (de pronunciar uma palavra), já que, sendo transparentes, comunicavam entre si, por antecipação — de uma forma imediata —, os sentidos. Os Anjos assemelhar-se-iam, assim, a espelhos invisíveis.

Fernando Guerreiro, A sagrada família

7.12.25

Carta de Europa

Querido pai,

alguma vez se deparou com a morte? Posso dizer que a vi desde o primeiro dia em que nasci. Não à maneira dos poetas barrocos espanhóis que o pai me leu ou dos memento mori da pintura. Nesses casos, a morte era ainda uma coisa que se anunciava. A vida era a espera e a esperança dessa vinda aguardada e reconhecida. Santa Teresa, aliás, não pensou outra coisa, só que deu o nome de desejo (por vezes «ardente») a essa «espera», vivida como clímax. Percebeu que a única maneira de ultrapassar a morte consistia em antecipá-la, desejando-a e construindo-a ainda em vida. Mishima também fez isso. No famoso dia 25 de novembro de 1970. Fê-lo como uma coisa ou uma forma apetecida. Ficcionalizou a «morte», construiu-a como um dos capítulos ainda da vida. Escreve-se, não é?, para antecipar a morte. A pequena morte. Para a usar em doses pequenas como uma anfetamina — ou morfina. Não falo propositadamente em heroína. Aí, trata-se da espiral alucinatória da morte, ignorando-se, iludida, mas ainda acreditando constituir uma forma entusiástica (nalguns casos orgástica), ou desértica, de vida. Sei que na tua farmácia tens muitas lâminas pequenas e algumas drogas duras. Mas a morte, tal como a queremos, é sempre uma morte pequena. E quando vem, só então é como the last shot, uma droga dura. Em pequena, espetavas-me com as tuas seringas. Dizias-me: «aí tens os teus castelos de espuma — o bosque onde o touro te pode vir surpreender e ferir sonho dentro, como a uma bela adormecida». Eram estes os teus contos de embalar. Entrecortados com veias mortas, facas d'ónix e seringas, lâminas curtas. Os cutelos, manejo-os desde pequena. Foi essa, mesmo, a primeira iniciação que me deste — e onde deve ser, na cozinha. Entre frangos e coisas pequenas: rodelas de fiambre e flores de farinha... O sangue jorrava das pernas e era um caldo morno onde todos, depois — a nossa mãe ausente —, nos banhámos e lavámos as feridas. Foram umas férias — e uma infância — sangrentas. Mas habituou-nos à vida. A reconhecer o sangue onde as pessoas, com as roupas, com todo o cuidado o escondem e dele se defendem. Disseste-nos: as pessoas, se se vestem, as roupas usam-nas como ligaduras: para estancar o sangue ou cauterizar as feridas. De outro modo, não andariam nuas, não é bem isso, mas comportar-se-iam como se o seu estado natural fosse o da transparência. Usariam apenas as roupas que as dessem melhor a ver: translúcidas. Assim não, desculpam-se com o inverno ou a chuva... Por vezes, contudo, há recaídas (como grandes fendas, grandes aberturas no tempo) e então as pessoas cruzam-se como pessoas de novo nuas, feridas. Sobretudo as raparigas. Lembro-me como foi para ti épica essa época dos finais dos anos setenta. Needles and pins. Ou seja, as pessoas finalmente vestiam-se como alfinetes. Como coisas ácidas, duras drogas felinas. A mini-saia voltou a ser, durante algum tempo, um rasgão, um clarão que incendiava o ar e o espaço. Uma ranhura (rasura) no bom-gosto. As meias violácias ardiam no ar, faziam andar o espaço e, quando elas passavam, era como grandes bandos de estorninhos, de súbito mudos; que sobre tudo pousavam e caíam, feridos. Marcel Lecomte comparava-nos às Amazonas — e a tua vontade era que eu fosse a primeira delas, aquela sobre quem Kleist escreveu, Pentesileia, a opositora de Aquiles. Por isso nascemos no dia em que, para os outros, morremos. Não somos zombies dos outros mas vampiros de nós mesmos.

Fernando Guerreiro, A sagrada família



[foto de Diane Arbus]

O silêncio de Nan Goldin


4.12.25

Depois da paciência

A tirada mais importante de todos os tempos

A Grã-Bretanha foi derrotada.
Vocês também serão derrotados!
Rifqa El-Kurd

Rifqa tirou-me os meus molotovs.
Se não uma metáfora
dariam uma boa jarra para jasmins,
uma boa animação à mesa de jantar,
onde a revolução consiste em baixar o volume da TV
para permitir a conversa.

Com o passar dos anos    os dedos dela emagreceram,
veias como videiras.
As varandas exigiam menos deambulações
e a Teta desistiu do telecomando.

Um xeque no ecrã tagarela acerca da libertação.
É o que vem depois da paciência. Depois da paciência
existe apenas um túmulo, diz a Teta.

Para quê embalar uma mulher com cem anos
cujas tiradas permanecem intactas? 

A minha mãe
é a sua bengala.
Quando não uma metáfora, a sua bengala é
o fim de uma cama ou de uma frase.
Ela agarra-se à física e à sua perspicácia.
A sua bengala nunca
é um bastão para os idosos. Ela que em tempos conheceu
sudários roxos, que em tempos conheceu
nuvens como fiapos do seu cabelo,
não baixará a cabeça. É uma luta na verdade
quatro da manhã e os meus pais gritam por hospitais.
A Teta voltou a cair.

Ela está bem. Alhamdulillah. Há cem anos
numa corda bamba entre o orgulho e a auto-estima.
Cresci num circo. Cresci em serviços de urgência
e a morte após os serviços de urgência
era incomum, pelo que nunca estive de fôlego sustido nem
                                                                              de mão dada.
                                                A esperança para mim
era um resultado inesperado, sempre.
A Teta caminha debilmente.
Tem uma coluna direita, em teoria.
Herdei dela        a sua corcunda
e a sua intuição profunda.

Em Julho passado, perguntou-me como voltaríamos para casa.
Nas nossas bicicletas, disse eu, rindo-me.
Vai na tua bicicleta, que eu vou no meu cavalo.
As suas tiradas intactas               o seu sorriso inquebrantável.

Atribuo imaginação à memória:
molotovs em malas Fendi,
                                        panfletos em sapatos de pele de cobra,
lenços de seda dissimulando a violência,
um neto fascinado por ambas as rebeliões.
A Teta lembra-se do que é preciso:
espingardas em sacos de arroz,
barrigas abertas ao meio,
mulheres confundindo almofadas e descendentes,
homens tocando sirenes na rua, actuando com fervor,
mulheres cujos deuses já não respondem,
homens emasculados pelo estatuto de refugiados.
Ela não se lembra do meu nome;
a indelicadeza é muito mais memorável          do que o sangue.
Sete décadas depois ainda se lembra
do que martirizou a sua pátria pela primeira vez.

A convicção política mantém-se.
Cantos de protesto como candelabros no seu subconsciente.

Habibi? Porque estás na América?
Escola.
Deus te abençoe. Mohammed quem?
Porquê a América? Tem cuidado! Diz-lhes:
«A América é a razão.» Diz-lhes: «Bebam o mar.»
Deixa-os montar os seus cavalos altivos.
Jerusalém é nossa.

A tirada mais importante de todos os tempos.

Mohammed El-Kurd, Rifqa

Como uma canção

O homem diz que o andar do rapaz se parece muito com uma canção e pouco com um homem a andar.

Mohammed El-Kurd, Rifqa

3.12.25

Bisonte

1.
Uma manada de búfalos avança para a cidade de Billings,
            no Montana.
Bisontes machos pesam uma tonelada, e até mais,
e podem ter a altura doida de um metro e oitenta.
Veem, portanto, do mesmo ponto dos olhos humanos
mas, claro, não têm o mesmo critério nem as mesmas propriedades.
Do focinho à cauda podem ter quase três metros,
mas tal como usar animais como referência na medição
            de coisas artificiais talvez não faça sentido
— uma casa não tem o comprimento de sete búfalos — também na
natureza as medidas não deveriam resultar dessa referência
                                                                     abstrata, neutra,
e demasiado higiénica que é o metro.
Coisa abstrata nunca acalmou fome ou fúria de bicho.

2. 
O que é o metro, na natureza, senão nada que se coma,
sem carne nem utilidade imediata;
um little deus para os humanos em transações
                        envolvendo espaços,
porém, na grande pradaria do velho oeste americano,
tudo se media a tamanho de pés ou botas de couro —
            ou a dorso gordo de animais
como se fazia com o bom do búfalo quando não o aborreciam.
Quantos búfalos cabem numa planície?, eis a questão,
eis a forma natural de medir, meio a olho, meio a quilo.
Mas diga-se: um animal furibundo talvez não meça exatamente
o mesmo que o mesmo animal quando sonolento
ou calmo. A fúria faz no organismo o milagre do aumento de 
                                                                        comprimento,
                        largura, altura e volume;
a fúria faz animais altos e fortes. A mansidão ou o abrochar,
que toda a proximidade à casa humana exige,
pelo contrário, faz do leopardo, gatinho; do lobo, caniche; da
águia, galinha piu-piu ou papagaio de três palavras,
bichos obedientes e patarocos:
sim senhor, sim senhor — sim, minha senhora.

3. 
Não se trata apenas, pois, de fazer mais pequeno o que nasceu 
para ser maior; trata-se de enfiar pela goela abaixo
hábitos urbanos no estômago mortinho por ser boçal
                                          ou até selvagem.
Os animais passam a ter quatro patas mas como as mesas;
são transformados em acompanhantes, diz Bloom a Creonte,
em funcionários afetivos, calada mobília que ladra e caga.
Os animais não têm, pois, medida: a fita métrica é,
diante da biologia, uma impostura;
um animal muda de tamanho só pela respiração:
mais ou menos oxigénio no tórax e eis que o rigor da balança
             ou do milímetro se tornam obsoletos.
Nenhum animal vivo tem medidas certas
e se queres ser alto e largo, sê feroz;
manso cabes no buraco de uma agulha, bravo e revoltoso
            não há cadeira que trave a tua pressa.

Gonçalo M. Tavares, O fim dos Estados Unidos da América

2.12.25

Cães num presépio

Até que ponto acha que a sua experiência familiar e pessoal ajuda a compreender o que se passa hoje em dia?

Esta não é uma autobiografia convencional. Os três mundos do título são o Iraque, onde vivi até aos 5 anos; Israel, onde vivi dos 5 aos 15; e Inglaterra, onde estudei dos 15 aos 18. O livro tenta entrelaçar uma história familiar com uma história mais ampla — a da comunidade judaica no Iraque na primeira metade do século XX. Gosto de pensar nele como uma autobiografia impessoal — o que, claro, é uma contradição nos termos. Mas há certos temas subjacentes. O sionismo era um movimento de judeus europeus para judeus europeus. Um dia perguntei à minha mãe — que falava sempre dos maravilhosos amigos muçulmanos que tínhamos em Bagdade — se tínhamos algum amigo sionista. Ela olhou para mim como se fosse uma pergunta bizarra. E disse: “Não, não, o sionismo é uma coisa asquenaze. Não tem nada a ver connosco.” Essa visão era bastante representativa, típica da maioria dos judeus no Iraque. Estavam lá há dois milénios e meio, quase mil anos antes do surgimento do Islão. Além disso, os líderes sionistas não tinham interesse nos judeus das terras árabes. Tinham uma visão eurocêntrica. Olhavam de cima para os árabes e também para os judeus árabes, como a minha família — apenas um pouco menos “primitivos” do que os outros árabes.

[...]

Até que ponto acha que o racismo esteve por detrás de tudo isto em 1917 e ainda hoje?

O racismo está no ADN das potências coloniais. Arthur Balfour, o ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, era na verdade um antissemita. Aprovou a Lei dos Estrangeiros de 1905, a primeira legislação anti-imigração na Grã-Bretanha, destinada a impedir que judeus perseguidos na Europa de Leste viessem para o país. Os antissemitas apoiavam o sionismo — a cria­ção de um Estado judaico — precisamente porque não queriam judeus nos seus próprios países. As potências coloniais viam os povos nativos como primitivos, inferiores e atrasados, mas os judeus num nível de civilização superior. Em 1937, Winston Churchill comparou os árabes locais, os nativos, a cães num presépio, dizendo que o facto de o cão ter estado deitado no presépio durante muitos anos não lhe dava direito a ele. Acrescentou que os árabes deviam dar lugar a outra raça, uma raça mais experiente e superior — os judeus. É um exemplo extremo do racismo britânico.

“Israel é um Estado de supremacia judaica”: entrevista ao historiador Avi Shlaim por Luís Faria, Expresso, 27.11.2025

30.11.25

Apocalipse Left Wing

1.
Jukebox junto aos passeios, na rua, os transeuntes bailam à
                                                          moeda;
velhos objetos parecem resistir melhor ao contágio,
revivalismo vem como se viesse afinal do futuro,
tudo indica que objetos antigos estão imunes ao novo vírus.

2. 
Em certas ruas, antiguidades sobre mesas
agitam leilões de gringos pobretanas;
            talvez no apocalipse, pensa Left,
os preços das casas e das coisas finalmente desçam.

3.
No fim do mundo a inflação perde vigor e firmeza,
treme do terço inferior das pernas,
vende setenta pelo preço de sete;
tudo fica ao preço da chuva e da uva mijona;
só na manhã antes do apocalipse tudo será de todos, pensa Left;
aí acabou o negócio e o Estado comunista finalmente funciona.
Televisões smarts substituídas por martelos crash.
Left Wing prescinde do presente, prefere o apocalipse.

Gonçalo M. Tavares, O fim dos Estados Unidos da América

28.11.25

Sinto-me frequentemente comovido sem me mover

Piolhos

Suheir Hammad disse-me      a dor esse professor.
                                  Eu respondi        a dor esse ladrão.
Ensinou-me a desejar ser um macaco
a catar piolhos na cabeça do meu irmão
em vez        disto aqui        smokings e conversa.

Desfaço-me em desculpas,
                arrependido em geral.

A culpa é muitas vezes minha
por ter uma dúzia de cavalos mortos sob a cama,
poemas cheios de remorsos para os analfabetos em remorsos.
Isto não é sequer                                    uma metáfora
              nem sequer uma facada               nem uma pedra.

Os meus amigos dizem-me que preciso de falar,
explicando o assassino ao assassinado — Doutor,
e se eu lhe dissesse que desconfio
da civilização e dos civilizados,
que prefiro        catar piolhos na cabeça do meu irmão
          a catar        a sanidade na minha?

A dor esse professor, e a vergonha uma bússola.
          Sinto-me frequentemente comovido sem me mover.
Preferia arrancar a maçã
da minha própria garganta        Quero
                            arrancar a maçã
da minha própria garganta. Quero a minha voz
sem voz. Ponham jóias nas minhas órbitas
e fingirei que consigo ver.

O inglês considera o sentimentalismo piroso,
                        raramente deixa as sirenes respirar,
e eu insisto neste oxigénio.

Só posso descrever esta culpa
com comparações que a invalidariam.
Já não quero usar a linguagem, já não
                        quero usar a língua.

Nos últimos anos encarei os aeroportos
como casas funerárias —
levando a bordo os meus cavalos mortos
novas cidades                                            novos drones.
Gostava de ser um proprietário
dos inquilinos na minha cabeça. Gostava de poder
chular a minha dor                                 e endurecer.
A dor esse professor        e eu nunca aprendo.

Mohammed El-Kurd, Rifqa (traição Manuel de Freitas)


8.11.25

Tribunal universal

Se houvesse um tribunal universal
Composto de homens bons que decidisse
O que convém, em vez de cada um
Pensar que o que convém é o que lhe serve!
Não vês como aos poderosos, aos espertos,
Tudo se ajusta, e eles tudo podem?

Goethe, Torquato Tasso (trad. João Barrento)

1.11.25

Pasteurizado com merda

Elias, para o inspector Otero: Norah d'Almeida, mi hermana emputecida, de dia liceu, à noite chungaria. Cultura em sessões contínuas é o que isto quer dizer.
E Otero: Lavagem, Covas, quais cultura. Essas gajas vêm é lavar-se à má-vida das poucavergonhas dos paizinhos.
O inspector nunca foi ao Bolero mas conhece o Texas e o Grego, fenómeno semelhante. A mesma maltezaria de cineclube, as mesmas esgraçadinhas a contarem estórias ao taxímetro e se calhar até as mesmas estórias, admira-te. O que vale é que as putas dão para tudo, diz. Não houve aquela Madalena que depois de morta foi santinha?
Elias, pensativo: Também acho, o problema é de lavagem. Lavagem pela via do encardido, olhe o que disse a tal Norah, «este país precisava de ser pasteurizado com merda», foi o que ela disse em declarações. Com merda. E não julgue que se engasgou ou que pediu procuração.
O inspector fecha com uma gargalhada: Mães aos bordéis, que as filhas já lá estão. Verdade ou mentira, Covas?

José Cardoso Pires, Balada da praia dos cães


O que faz ejacular Netanyahu?

ATRAVÉS DE Althusser, a pergunta
— O que faz ejacular Netanyahu?

(Besta apocalíptica, cansalmas.)

(A Censura, em seu mutismo, bálsamo que dá o pó de talco
aos que grulham a Loucura de oiro espelhada no morticínio.)

A morte macabra sobre a aparência de espúrias razões!

José Emílio-Nelson, Púrpura senil


13.10.25

Shayma Abualatta


Viver desde sempre num campo de concentração constituído maioritariamente por refugiados. Aprender a resistir, a não apenas sobreviver. Sem poder falar, sem poder sair do lugar, sem conhecer senão a opressão do projeto nacional mais tresloucado deste tempo. A construir sentido apesar do exterior mais violento, o genocídio, ignorando-o. Construir sentido é o que se faz quando não se pensa em recursos, algo dificílimo quando os recursos são quase nada para todos. O estoicismo revisitado, não como teoria mas vida concreta, como é suposto, segundo Shayma Abualatta. A servidão é consentir a miséria que nos impõem, o poder é a tristeza sobre os corpos, quando não a morte a crédito americano e europeu.

Estórias por contar pela imprensa ocidental. Não a narrativa dos vencedores, daqueles que vão, ou pretendem-no, ficar para a História como os que expandiram os limites do seu império. Sair, bater, matar, regressar e narrar. Não isso, mas as estórias de debaixo dos escombros, os uivos soterrados. A única estória verdadeiramente e a política por que vale a pena pugnar.

5.10.25

Sionismo, origens

O sionismo surgiu no final da década de 1880 na Europa central e de leste como um movimento de restauração nacional, motivado pela pressão cada vez maior, naquelas regiões, sobre os judeus, seja em vista da assimilação total ou sob o risco de incessante perseguição (embora, como sabemos, a assimilação plena nem sequer tenha sido uma salvaguarda contra a aniquilação, no caso da Alemanha nazi). No início do século XX, a maioria dos líderes do movimento sionista associou esta revitalização nacional à colonização da Palestina. Outros, em especial Theodor Herzl, o fundador do movimento, eram mais ambivalentes; mas, após a sua morte em 1904, a orientação para a Palestina estava decidida e era consensual.
Eretz Israel, o nome da Palestina na religião judaica, foi venerada, ao longo dos séculos, por gerações de judeus como um lugar de peregrinação sagrada, mas nunca como um futuro Estado secular. A tradição e a religião judaicas ensinam claramente os judeus a aguardar a vinda do Messias prometido no «fim dos tempos», antes de eles poderem regressar a Eretz Israel como um povo soberano numa teocracia judaica, ou seja, como servos obedientes de Deus (eis porque, hoje, várias correntes dos judeus ultra-ortodoxos ou não são sionistas ou são antissionistas). Por outras palavras, o sionismo secularizou e nacionalizou o judaísmo. Os pensadores sionistas, em vez da materialização do seu projeto, reivindicaram o território, recriaram e, na realidade, inventaram-no como o berço do seu novo movimento nacionalista. A Palestina, tal como eles a concebiam, fora ocupada por «estrangeiros» e tinha de ser retomada. «Estrangeiros» significava aqui todos os não judeus que viveram na Palestina desde o período romano. Na verdade, para muitos sionistas, a Palestina nem sequer era uma terra «ocupada», quando lá chegaram pela primeira vez em 1882, mas sim uma terra «vazia»: os palestinos autóctones que ali viviam eram assaz invisíveis para eles ou, caso contrário, faziam parte das adversidades da natureza e, como tal, deveriam ser submetidos e deslocados. Nada, nem rochas nem palestinos, deveria impedir a «redenção» da terra, que o movimento sionista cobiçava.

Ilan Pappé, A limpeza étnica da Palestina



24.9.25

O sofrimento e o fim da democracia

Assista-se a este relato de uma médica australiana voluntária no Hospital Al-Shifa, de Gaza.


Agora compare-se com a notícia que é dada na RTP (35,17) que repete, ponto por ponto, a propaganda de Israel. O dano provocado na democracia portuguesa é tão ou mais extenso do que o que resulta da actividade dos partidos de extrema-direita, pois provoca a indiferença em relação ao sofrimento, semeia cobardemente o racismo e justifica crimes contra a humanidade e genocídio. A destruição, na sucessão de imagens da peça da RTP, parece nem incidir sobre humanos e ter sido provocada por alguma catástrofe natural, e não por um agente político e humano concreto: o exército de Israel. «As declarações de Israel são factos, as acções de Israel são justificáveis, desumaniza-se assim os palestinianos. As vítimas de genocídio têm que implorar ao mundo para que se acredite que são realmente vítimas», resumiu, numa entrevista, a jornalista Assal Rad.
Godard disse, sarcasticamente, que a objectividade é 5 minutos para os judeus e 5 minutos para os nazis. O que temos, em 2025, na Europa, é um desequilíbrio nestas contas (que já eram abjectas) em que nenhum minuto sobra para o uivo e a narrativa de quem sofre, tal o enquadramento opressivo que anula o sofrimento a que palestinianos concretos dão voz.

18.9.25

Velocidades diferentes

O supremacismo de Israel realiza, nos territórios ocupados da Palestina, aquilo que a extrema-direita imputa aos imigrantes (muitos deles árabes) no Ocidente. De acordo com a propaganda abjecta da extrema-direita europeia, os imigrantes beneficiam de elevados subsídios, apartamentos e outros bens oferecidos pelos Estados europeus. Ora, um imigrante americano ou europeu que adira ao sionismo sabe que não precisará de grande esforço para despossuir os palestinianos da sua terra, da sua casa e de outros recursos. Basta o assédio, a ameaça, a vandalização de propriedade, a agressão, o assassinato — com armas fornecidas pelo Estado de Israel. Imputa-se de algum modo aos imigrantes que vivem nas sociedades europeias as acções que os ocidentais realizam na Palestina. Território onde se operacionaliza um programa humanista que visa destruir e reconverter civilizações consideradas inferiores. Ao mesmo tempo, fomenta-se e normaliza-se a arabofobia, a islamofobia e o racismo, em geral, por cá, com base nos mesmos pressupostos políticos e metafísicos. De outro modo, retomando um argumento de Enzo Traverso, predomina uma visão conservadora segundo a qual o Ocidente estaria sob ameaça do Islamismo, o que legitimaria os actos mais hediondos. Daí que os partidos de extrema-direita europeus estejam do lado de Israel, que representa o modelo para os regimes pós-democráticos que se esboçam pela Europa. A social-democracia europeia ainda está dividida quanto a reconhecer a existência de um projecto colonial israelita que provoca todo o tipo de violência e fanatismos. Israel é o resultado do processo de secularização do sionismo, um nacionalismo estatal que opera a limpeza étnica e o genocídio desde 1947 e que conta com o apoio financeiro e o entusiasmo de inúmeros cristãos fundamentalistas justamente porque se permite pôr em prática a purificação étnica da Terra Santa. Por isso, o que verdadeiramente deveria ser discutido é o processo de descolonização da Palestina e não a questão dos dois Estados. A garantia de que há direitos iguais para todos, o fim do apartheid, o fim do rogue state de Israel. Seja como for, é ridículo que se continue a afastar os palestinianos da liderança da negociação do futuro naquele território. Enquanto a opinião pública internacional se vai lentamente ilustrando para pressionar o poder político (o que move os políticos são apenas as suas carreiras e a imagem pública), em Gaza milhares de inocentes são chacinados sem parar. Velocidades diferentes que permitem a expansão do horror.

12.9.25

A grande farsa

 

Limpeza étnica, pogroms, Lebensraum, genocídio (a 11/09, 72 palestinianos mortos em Gaza, 9 mortos a pedir comida, 7 mortes por fome e má nutrição). 'Presos', referem os jornais, jamais 'reféns' (culpados, pois, por não quererem ver destruídos ou alienados os seus bens, nem mortos os seus familiares e amigos). Marcha pelas estradas de Tulkarm de mais ou menos 100 homens para condenação geral, para serem humilhados. À volta de 1500 palestinianos feitos reféns por Israel ontem em toda a Cisjordânia. Num total de 15000, sem acusação, entre os quais centenas de crianças. Por cá sem manchetes, sem notícias, em suposta democracia.

Adenda, Basel Adra e família em risco, entre tantos outros palestinianos:


2.9.25

Os índios de Israel

A causa palestiniana é antes de mais a das injustiças que esse povo sofreu e continua a sofrer. Essas injustiças são actos de violência, mas também ilogismos, falsos raciocínios, falsas garantias que dizem compensá-las ou justificá-las.
(...) De uma ponta à outra, trata-se de actuar como se o povo palestiniano não só não devesse existir, mas como se nunca tivesse existido.
Os conquistadores estavam entre aqueles que sofreram o maior genocídio da história. Os sionistas fizeram desse genocídio um mal absoluto. Mas transformar o maior genocídio da história num mal absoluto é uma visão religiosa e mística, não uma visão histórica. Ela não detém o mal; pelo contrário, propaga-o, faz com que ele incida sobre outros inocentes, exige uma reparação que faz os outros sofrerem um pouco daquilo que os judeus sofreram (expulsão, guetos, desaparecimento como povo). Com meios mais "frios" que o genocídio, pretende-se alcançar o mesmo resultado.
Os EUA e a Europa deviam aos judeus uma reparação. E fizeram com que essa reparação fosse paga por um povo que não tinha nada a ver com ela, singularmente inocente de qualquer holocausto e que nem sequer tinha ouvido falar dele. Aqui começa o grotesco, assim como a violência. O sionismo, e depois o estado de Israel, exigiram reconhecimento jurídico aos palestinianos. Mas ele, o Estado de Israel, nunca parou de negar a existência de um povo palestiniano. Nunca se fala de palestinianos, mas de árabes da Palestina, como se estivessem lá por acaso ou por engano. Depois finge-se que os palestinianos expulsos vinham de outro lugar, nunca se mencionará a primeira guerra de resistência que lutaram completamente sós. Faz-se deles descendentes de Hitler, já que não reconhecem a Israel o seu direito. Mas Israel reserva-se o direito de negar a existência deles. É aqui que começa uma ficção que a cada vez se difundirá mais e que pesará sobre todos aqueles que defendiam a causa palestiniana. Esta ficção, a aposta de Israel, era fazer com que qualquer um que desafiasse os factos e as acções do Estado sionista parecesse anti-semita. A fonte desta operação foi a fria política de Israel para com os palestinianos.
Desde o início, Israel nunca escondeu o seu objectivo: esvaziar o território palestiniano. Melhor ainda, actuar como se o território palestiniano estivesse vazio, destinado sempre aos sionistas. Era uma colonização, mas não no sentido europeu do século XIX: não se pretendia explorar os nativos, mas expulsá-los. Aqueles que resistissem a sair não se converteriam em mão-de-obra dependente do território, mas sim mão-de-obra errante e desenraizada, como se fossem imigrantes colocados no gueto. Tratava-se desde o princípio de ocupar terras como se estivessem desertas ou se pudessem esvaziar. É um genocídio, mas o extermínio físico está subordinado neste caso à evacuação geográfica: sendo árabes em geral, os palestinianos sobreviventes devem fundir-se com o resto dos árabes. O extermínio físico, confiado ou não a mercenários, não deixa de estar presente. Mas não é genocídio, dizem, já que não é a "solução final": de facto, é um meio entre outros. A cumplicidade dos Estados Unidos com Israel não procede unicamente do poder de um lobby sionista. Elias Sanbar mostrou perfeitamente como os Estados Unidos encontraram em Israel um aspecto da sua história: o extermínio dos índios que, também neste caso, só em parte foi directamente físico. Tratava-se de esvaziar, de actuar como se nunca tivessem existido índios a não ser em guetos, o que faria deles outros tantos imigrantes por lá. De muitas maneiras os palestinianos são os novos índios, os índios de Israel. A análise marxista identifica estes dois movimentos complementares do capitalismo: impor constantemente limites, dentro dos quais constrói e opera o seu próprio sistema; deslocar para cada vez mais longe esses limites, ultrapassá-los para voltar a empreender, a maior escala ou maior intensidade, a sua própria fundação. Deslocar os limites foi a acção do capitalismo americano, do sonho americano, que foi recuperado por Israel e pelo sonho da Grande Israel em território árabe e à custa dos árabes. (...)

Gilles Deleuze, «A grandeza de Yasser Arafat» (1983), Dois regimes de loucos

O termo 'índio' mantém-se para dar conta da prepotência e da ignorância dos colonizadores que assim designaram os povos nativos americanos. Desde que se difundiu mediaticamente o termo 'terrorista', especialmente após o 11 de setembro, pôde o Estado cumprir sem mais disfarces o papel de mercenário, sem tanta necessidade de células paramilitares (que persistem na Cisjordânia). Há claramente um acelerar do genocídio que suplanta a limpeza étnica. Encontra-se hoje no alastrar da extrema-direita o contexto adequado para a normalização do genocídio e, além disso, para a sua denegação.

30.8.25

Hind Rajab

Hind Rajab. Evoco o nome e o rosto para evitar o silenciamento de tanta morte, esse apaziguamento calculado por estratégia económica e de carreira, modo discreto de prosseguir séculos de Censura em pouco mais de 500 anos de imprensa em Portugal. Não é um problema apenas português, pois a vassalagem ao poder americano é extensiva a toda a Europa (ainda que Espanha, Eslovénia, Eslováquia e Irlanda, ocasionalmente, se lhe oponham). Esta circunstância permite também perspectivar a crise global do jornalismo que, tal como os governos, se encontra refém da agenda supremacista da extrema-direita. Seria preciso fazer a devida vénia aos exemplos de coragem que vêm de Gaza, com, à data, desde 7 de outubro de 2023, 200 jornalistas assassinados pelo seu ofício em nome da liberdade. Os mesmos a quem, por estes lados, num viés racista que contribui ainda mais para desumanizar o povo palestiniano, se atribui pouca credibilidade.

Hind Rajab é o nome de uma menina de cinco anos que fugiu de carro, em Gaza, com a família, no dia 29 de janeiro de 2024. O IDF havia dado ordem de evacuação aos habitantes do bairro Tel al-Hawa. Nem dez minutos depois da saída de casa, a fuga é bloqueada por um tanque israelita. Uma prima de Hind faz uma chamada de telemóvel para o Crescente Vermelho (equivalente da Cruz Vermelha) e pede ajuda. Nas gravações da conversa telefónica, durante seis segundos escutam-se 64 tiros de metralhadora. Pesquisas da Forensic Architecture mostram consistência entre os orifícios provocados pelas balas no carro e as armas dos tanques israelitas. A família da menina é executada; Hind Rajab é a única sobrevivente e mantém-se no assento de trás da viatura. Atende a chamada de uma operadora do Crescente Vermelho que, entretanto, procura pôr-se a par dos acontecimentos. Falam mais do que uma vez durante vários minutos e Hind pede ajuda: está fechada no carro com os corpos mortos da sua família, dois adultos e quatro crianças. A gravação de uma conversa em que Hind pede que a vão buscar e só obtém silêncio, é atroz, expõe a operadora a uma impotência ainda mais escandalosa quando confrontada com o exercício arbitrário de poder que, desde logo por sê-lo, é destituído de qualquer empatia. Após longa espera de autorização israelita, é enviada uma ambulância ao local, cerca de 9 horas depois. Quase duas semanas depois, a 10 de fevereiro, os paramédicos são encontrados mortos (a ambulância explodiu com um projéctil israelita) e a própria Hind, dentro do carro. O IOF tinha conhecimento, como se infere, de que a ajuda médica iria até ao local. Investigações da Sky News e do Washington Post confirmam presença militar israelita naquela zona à hora do massacre. As perícias da Forensic Architecture contabilizaram um total de 335 tiros cravados no carro desta família em fuga. Serão decerto estas pessoas contabilizadas como baixas terroristas nalgum relatório de sintaxe funcional para justificar guerras ao terror e, ipso facto, garantir novos financiamentos para esse efeito da parte das assim chamadas democracias ocidentais.

Esta carnificina motivou a criação do filme The Voice of Hind Rajab da realizadora tunisina Kaouther Ben Hania, com apoio à produção de, entre outros, Brad Pitt e Joaquin Phoenix. Estreará no Festival de Veneza que decorre por estes dias.

À parte as opções da cineasta, a História é isto, ceifar de modo inapelável vários anjos, como Hind, em face do triunfalismo dos vencedores. É por isso crucial desviar o olhar ainda que sempre no-lo desejem dirigir, falar num outro tom, destutelar-se de qualquer intenção humanista para continuar o grito de quem sofre, para lhe dar forma. Esse será um dos desígnios da Hind Rajab Foundation entretanto constituída.




Força e linguagem

Relembrar aquele que foi sarcasticamente designado como o juiz de mesinha de cabeceira nazi, Carl Schmitt, e o terrível conceito de “guerra justa”, que ele, entre outros, desenvolveu nos anos 40 do século passado — “o ensino da guerra justa anula a distinção entre inimigo e criminoso. O vencedor na guerra justa elege-se a si mesmo como um juiz diante do criminoso.” O juiz, ou seja, o vencedor da “guerra justa”, escreve Carl Schmitt, não se deve comover; e quem perde a guerra comete um crime que, no momento da derrota, lhe é atribuído em definitivo. Neste mundo perverso, os soldados que perdem deixam de ser soldados e passam a ser delinquentes comuns. Um salto que parece pequeno e quase insignificante, mas que é tremendo.
Carl Schmitt, aliás, no mesmo apontamento de 1947, troça da ideia de que quem escreve possa traçar os limites morais de quem triunfou na guerra. Schmitt cita um rei prussiano que afirmava, com a típica ironia dos vencedores: dizem que “o vencedor não pode” decidir o que faz do vencido, mas “quem escreve livros sim, pode decidir o que o vencedor deve fazer ao vencido.” Como se fosse ridículo, o vencedor pela força obedecer aos conselhos dos puros observadores que apenas escrevem ou discursam. De facto, para os reis da Prússia e para Carl Schmitt, o vencedor só não era surdo se quisesse. O vencedor fala o quer, ouve o que quer.
No fundo, sempre isto. Em 1848, em 1947 ou em 2022. A força só escuta palavras de contenção por vontade própria. A força do vencedor deve conter-se, todos o podemos dizer ou escrever, mas, no limite, só o vencedor pode decidir conter-se. Entre o dever moral e o poder do vencedor — eis o conflito. O vencedor deve, sim, tem mesmo uma enorme quantidade de deveres — as convenções de Genebra sobre a Guerra são disso um bom exemplo — mas só ele pode. Só mesmo ele pode.

Gonçalo M. Tavares, Expresso, «A força e a linguagem», 22.07.2022

28.8.25

A evidência

O problema é que, entre nós, como no seio de qualquer cultura que tenha sido vigiada por cinquenta anos de censura, a evidência não teve vida fácil.

Luís Mourão, Um romance de impoder. A paragem da História na ficção portuguesa contemporânea