9.2.25

Ler, comer, caminhar, dançar, ouvir (ou um texto para Vera Mantero e Susana Santos Silva)

Os escritores não conhecem a página em branco, o bailarino não conhece a inércia, nem sequer quando está parado (em muitos casos, sobretudo quando está parado). Parado, um bailarino é um monte Fuji na sua expansão silenciosa, Andes que não cessam de correr e guiar. Mas o dia era mais longo, tão longo como um corpo pode ser. Era feito das pedras que iam falando por baixo dos pés: ir até onde se começa a sentir que há mais dentro do que exterior, em que o ruído de fora se estende pelos gestos para sempre incalculados. Que dissolução essa inesgotabilidade interior. Em que a expansão do mundo é tão óbvia como dois braços a pedir socorro. Todo o corpo era a extensão de tanto por viver! O que levamos para dentro de uma vida, enfim algum momento parecendo tralha sem fim – e distraídos de tudo o que algum deus decidiu escolher por nós. Ah não, que somos controlados para determinar que sim, não infundado talvez, funcionários de uma intrínseca capacidade de juízo, tão culpada!, o ler as costas do pássaro no céu. Alguém com os seus trejeitos de arroubos desconjuntados era afinal de um tempo mais linear do que matemático: uma hora certa para uma resposta não menos convencida, a beleza e a sua promessa, tão doce e criminal. Era isso e um homem a perceber que nenhum se aguenta perante a injúria persistente, as notícias em quotidiano negro. O rio mantém-se secreto dentro das caixas da cidade, as formações lineares em que o corpo não devém, é carne repousando sobre as águas, e as ruas vão encontrando sempre maneira de encontrar um quintal e uma solidão verdadeiramente exacta. Ninguém entende um grito, nem sequer das vezes em que acontece ser ouvido. Às vezes era um desvio da escola, vínhamos aí por um caminho apertado com o rio ao lado, se rio houvesse. O rio seguia o desvio com nervo, em silêncio. Num túnel em que a história fosse intocada estariam todos aqueles para quem o desamparo se injectava, era pela adrenalina que seguíamos. Acabar consigo se nenhum amparo chega, despertar mais surdamente dos dias etéreos. Hoje por hoje, o túnel é só escuro, nenhum sofrimento que se veja; existem muros dentro d’onde antes se cosiam e colavam sapatos, os gandulos já não têm vidros para partir. Protegemo-nos do anterior em lugares já racionalmente vistos, a continuação do fim no meio. O corpo consegue regressar num teorema: em frente coincidindo com o por dentro, um poço de linhas tracejadas. Bem sei que nada mais falo do que para me resguardar o mais que possa. Mal nos defendemos das palavras com que recobrimos qualquer passado, o passado de qualquer um. Caminhamos sem fim porque o nosso cérebro esteve em apneia, ninguém diga que caminhar é só um sistema antigo que faz as pernas andar, porque essa antiguidade é mais sistemática que os próprios músculos que fazem sistema e modo impessoal de uso. As palavras são o outro engolido de modo imperceptível, é-nos ofertado como a fome. A pobreza de viver é social, a segmentação: primeiro ter fome, depois comer, sentir satisfação, defecar e assim, apesar de em nenhuma memória possível termos sido tudo isso ao mesmo tempo. Atidos pois ao difícil, ao pensar sem roda porque nenhum abandono é mais possível. A língua são esculturas feitas do ar com que não se sabe lidar. Nenhuma língua pertence mais que a si própria, ela fala pelas bocas e os dentes pessoais. Ausência traduz-se em mamã, papá. O ar resume o total desacerto, ter nascido e após falhar a intimidade. Adormecidos desse delírio com que a vida vinha a si antes do tempo carniceiro, como um marchante comum. Éramos corpo antes, imponderabilidade inimaginável. Desfigurado grito é todo o grito, o ar como esse invasor, posto fronteiriço de outro mundo: a respiração começa por dizer um adeus. Não tenho senão por obscuras as palavras para tanta claridade, a claridade com que avanço. Comer é estar com um sacerdote qualquer, o que organizou o sacrifício por trás da cortina. E vem depois todo o tempo atrás, as festas em que a humanidade era menos confusa – sempre menos confusa é a alegria que a regularidade com que se morre. No fim do dia, os corpos encolhidos ouvem como um ser ainda mal recém-nascido. O corpo é conhecer que o odre esteve fechado. A retrospecção é o ineducável; a vigilância, só o medo de morrer. 

A self called nowhere


I'm sitting on the curb
Of the empty parking lot
Of the store where they let me play the organ
I'm waiting for my ride
But I want to wait inside
Of the store where they let me play the organ

But I'm thinking of a wooden chair
In a room at the top of a stair
And I'm looking down the stairwell
At the vanishing dot
On the map of the spot
Let me take you there
The dotted line
Surrounding the mind
Of a self called nowhere
It's a thing named "it"
In a bottomless pit
You can't see it there
The sunken head
That lies in the bed

Of a self called nowhere

Standing in my yard
Where they tore down the garage
To make room for the torn down garage
I'm looking for my car
But I must have sold my car
When I needed to buy an electric organ
But I'm thinking of a wooden chair
In a room at the top of a stair
And I'm looking down the stairwell
At the vanishing dot
On the map of the spot
Let me take you there
The dotted line
Surrounding the mind
Of a self called nowhere
It's a thing named "it"
In a bottomless pit
You can't see it there
The sunken head
That lies in the bed
Of a self called nowhere
Nowhere
The vanishing dot
On the map of the spot
Let me take you there
The dotted line
Surrounding the mind
Of a self called nowhere
It's a thing named "it"
In a bottomless pit
You can't see it there
The sunken head
That lies in the bed
Of a self called

Política e medo em síntese

Quando estava no ventre da minha mãe
A estrutura social parecia uma coisa simples
Depois de nascer, amaldiçoei a minha sorte
E fui tomar o pequeno-almoço

O que sei preenche-me
É um cálice inesgotável
O que acredito nunca mudará
Minha consolação para a noite

A minha mãe deu-me um ovo
Eu compreendi as relações de produção
Ela cuidou sempre de mim
Foi aí que perdi a minha ingenuidade?

A estabilidade está na minha mente
Associo-me aos da minha espécie
A caridade enche o meu coração
Para ajudar os pobres em África

Muito bem, sim, fizeste um bom trabalho
Aqui está um pequeno prémio
A história do mundo

Gang of Four, «History of the world»



4.2.25

O que menos abandona

Tese 1. É necessário desconfiar do pensamento. A noética é traumatófila: O pensamento prefere o difícil de pensar porque o mais difícil é o que menos abandona.

Pascal Quignard

12.1.25

Não só de pão

«Não só de pão vive o homem, sobretudo quando não o tem»
Ernst Bloch

11.1.25

Espaços em branco

O anacoreta, no espaço social, é como deixar espaços em branco entre os fragmentos do livro.
Deixar algo secreto entre as sequências.
Não terminar as frases, os pensamentos, as relações, os amores. E, em especial, não terminar os medos.
A vida não termina com a morte.
A anacoresis não pode ser concebida como simples afastamento da manada, como licença do desejo e do medo, mas como dobra estratégica, alegria selvagem, ruptura crítica, experiência livre.
Há que manter-se austero no prazer. Não depender. Não depender sequer do prazer.
Deixar de ser funcionário de qualquer tipo de função.
Procurei o tempo. Procurei o melhor dos tempos, a imprevisibilidade, o surgimento errático.

Pascal Quignard, Sordidíssimos

1.1.25

Life to come

Clov: Do you believe in the life to come?
Hamm: Mine was always that.

Samuel Beckett, Endgame

25.12.24

A solidariedade é o mal

Há uma solidariedade do mal. É possível que a solidariedade, que substitui a gregariedade, seja essencialmente má, pois é essencialmente nociva. Os lobos associaram-se aos homens. Os homens, seguindo o exemplo que lhe davam os lobos que vinham do leste da Ásia, antes daqueles a que chamavam cães, quando se aglomeravam no momento da execução e do consumo da morte, puseram-se a caçar em matilha.
Se é necessário dessolidarizar-se do pior, a virtude será sempre isolamento, vazamento, vazio, fragmentação, individualização, ascese.
Agostinho: Quid sunt regna nisi magna latrocinia? Que são os reinos? Pilhagens enormes. Parva regna, pequenos reinos: necrofagias e roubalheiras. Pois os ladrões são forçados por um pacto social, pacto societatis, à disputa no que diz respeito às presas, às praeda. O conflito, a luta de classes, a guerra civil, é essa a regra do jogo social, pactus societatis.

Pascal Quignard, Os desarçonados (trad. Diogo Paiva)

24.12.24

O grito unânime do Ocidente

A definição do funcionamento das sociedades humanas foi fornecida no segundo livro da Torá. É o grito unânime que soltam os irmãos de José: «Vamos! Matemo-lo!»
Qual é a palavra, no texto que é lido no decurso da liturgia, que rege esta cena? A palavra Ocidente.
Eis o texto do Génesis traduzido por São Jerónimo. São Jerónimo traduziu a Bíblia a partir do hebreu e do grego no deserto da Palestina, na solidão de uma gruta.
Um homem encontrou na montanha um homem a vaguear. Perguntou-lhe:
— Que procuras?
— Os meus irmãos.
O homem que procurava a fraternidade dos seus irmãos chamava-se José. Ora, os seus irmãos viram-no a chegar de longe. Conluiaram a sua morte (cogitaverunt illum occidere), disseram entre si:
— Vamos! Matemo-lo! (Occidamus eum!)

Pascal Quignard, Os desarçonados

23.12.24

A vida secreta

É preciso iniciar uma luta — a fundo perdido — contra o social. Mas sobretudo não iniciar uma que se baseie no um contra todos. Sobretudo não a encarar como um bode expiatório que asseguraria a unanimidade amontoando as pedras nas mãos estendidas de todos aqueles que o visam. Não se trata de iniciar uma luta desigual para nela perecer. É preciso iniciar uma vida secreta na qual sobreviver. São as estas as palavras de La Boétie antes de morrer, antes de ser traído pelo amigo, antes de Montaigne desistir de o publicar, antes de ser vencido pelo esquecimento. É Espinoza excomungado, banido, fugitivo, livre, polindo o vidro das lupas para ver mais de perto a felicidade que anima a terra sob o mundo humano e contemplar o maior tempo possível a explosão original que prossegue no fundo da abóbada celeste. Alguns homens escapam do mito, desfazendo a servidão voluntária, errando na periferia do «Todos os homens».

Pascal Quignard, Os desarçonados

19.12.24

Publicidade aos piores sentimentos

Cinza ou consequência II

O wrestling da world federation
Tem muita audiência cá em casa.
Os filhos seguem o show
Com o silêncio da missa
E com o riso espontâneo e alto quando é retorquimento,
Reviravolta e grosseria.

As lutas são apenas plausíveis, as intrigas
Nos bastidores transformam os valores
Em sentimento, e logo há chefes e acólitos,
Chantagem em nome do grupo, o galo canta
O pavão, e dá-se ao público
Os Bons e os Maus.

O maior sucesso vem ter decerto
Com aqueles que a assistência ama odiar,
E há muitos nomes de herói e de vilão,
Exactamente como nos comics de onde vêm os uniformes.

Proeza e brio, despeito e inveja, legítima
Fome de vingança são antes, durante e depois.
São o handicap das lutas que assim podem
Acrescentar pontos ao conto.
As histórias por continuação 
Seguem por um equilíbrio instável de maldades.
Prevarica-se, bate-se à traição, engana-se o árbitro,
Que, de resto, não poucas vezes toma porrada também.

É que todos os combatentes, mesmo o Víscera, 
São puros e simples, ou seja, tão impulsivos,
Tão ajustados aos músculos e aos epítetos,
Como a audiência sentada, levada
Aos bicos de pés pela atenção
Ou pelo furor poético.
Todos concordam com as regras por batota,
De maneiras que afinal um ganha e outro perde.

Tenho algumas saudades de mim diante dos filhos
Diante do meu Tintin outrora lido; mando-lhes
A ambos lembranças, aos inesgotáveis
De quando a própria repetição era reencontro
E nunca estava prestes a acabar.
O riso dá-me a ideia que era o mesmo,
Sendo outros o repórter de Bruxelas e o Fernando Rocha.

Não sei como chegarão estes ao enfado
Que haverá de ter começado nestas tolices.

Américo Lindeza Diogo, Pássaros que fazem zimzum. Tracção do nada

16.12.24

Tracção do nada

História natural

Vi um cigano ser quase atropelado por um táxi
E crescer de navalha aberta para o taxista
Num ímpeto espontâneo que tem decerto mola
Em ser há séculos nesse dia um cigano objectivado.
Um polícia parou tudo apontando a arma para o ar
E o tumulto aquietou-se e as mulheres e o rapazio
Do alvoroço dispersaram e ficaram apenas uns cães
Na lama entre as casas iguais — uns cães iguais —
A ladrar ao vácuo ou a umas coisas (que coisas
Não sei, mas poucas) que terão restado a céu aberto
E abandonadas do interesse.

Chovia fino e a chuva que caía já lá estava.
Vinha de trás (como se diz) e também vinha de trás
Esta minha falta de vocação para ser cigano
Ou para ser preto quando havia escravatura e se lançavam pretos
A monte no porão, e metade morria a passar o Atlântico
E a outra metade era chicoteada e espalhada sem família
A bem da obediência e ria sapateados e era Uncle Tom
E cantava espirituais outra vez a bem da obediência.
Esta falta de vocação para ser judeu e ser coado do fumo,
Peneirados os ossos, a gordura, os chumbos e os ouros,
Vem também, com a chuva que vem de trás, contemplar
Os cães que ladram e abanam o rabo ou os cães
Que deitam a cabeça nas patas, aí onde não falta ser
E tal abundância importa pouco.

É possível fazer tudo a um homem, os homens podem fazer
Tudo a homens outros, chova ou faça sol, e o arame farpado,
Inventado para conter as vacas nas pradarias do Oeste
(Então já menos selvagem), foi logo a seguir usado
Em Cuba para conter os vencidos e pelos ingleses 
Contra os boers vencidos, e não duvido que lá
Houvesse lama e terra e ao menos um cão numa relação 
De intimidade e indiferença com um osso.

De resto, os homens são fáceis a juntar-se contra algum homem,
E pode ser um desses que, como eu, não sentem vocação e
São os mais fracos, pois os homens podem juntar-se
Contra algum homem que não é nenhum homem
Como sete cães a um osso.
Não tenho vocação para ser homem, para ser Homo
Sapiens Academicus, Homem Cigano, Homem Judeu ou
Homem Preto, Homem Cão do Homem, e teria
Sido decerto o homem omitido por algum bem maior
Ou bem nenhum (ou bem só de pertencer ao rebanho humano)
Que batesse, humilhasse e matasse — ou batido,
Humilhado e morto, rindo o meu sapateado
E desatendido dos que a quatro patas se estão roendo
Até a uma certeza de ser (e o nada correspondente),

Que rodam como chacais no mundo ralo ou pousam
A cabeça entre as patas como leões, sendo cães,
Pois os cães continuam a vida deles
E a vida continua nesses cães. 

«Escrevia o poeta, se bem se lembrava, que os cães continuavam a vida deles. Ele continuava a sua.» Donna Leon, Na Senda do Crime, p. 213.

Américo Lindeza Diogo, Pássaros que fazem zimzum. Tracção do nada


Nan Goldin, discurso em defesa da Palestina

Qualquer recorte do real é político; a fotografia ou mostra a dor (sem estética, maximamente desprendida) ou é negócio, ou seja, abjeta. A arte fala dos que morrem, a intervenção acusa os sobreviventes que, além de os terem matado, os humilham (os sobreviventes de uma hora, as vítimas eternas). Nenhuma celebração que não seja a possibilidade de um fogo, a negação de um qualquer euzinho inflado. Um resto por onde o real extravasa, onde fica e pode ser imaginado todo o sofrimento.


17.11.24

Homens-sanduíche, varredores, frio

Dezembro

Neva
e, ainda assim, os desamparados
continuam
a carregar os cartazes-sanduíche —

um deles proclama 
o fim do mundo
e o outro
os preços da barbearia lá do sítio.

Charles Simic (Cavalo Velho, 2, trad. Hugo Miguel Santos)


Bem cedo, na minha infância, vi pela primeira vez os varredores, limpando a neve com uma roupas ligeiras e coçadas. À minha pergunta respondeu-se que eram homens sem trabalho, e que lhes era dada essa ocupação para ganhar o pão. «Então, ainda bem que têm de limpar a neve», exclamei furioso, para logo chorar desconsoladamente. 

Theodor Adorno, Minima moralia (trad. A. Morão)

16.11.24

Hospitalidade

No átrio da estação de Lyon, no cais des Chiffres, com destino a Sens, os pobres, os mendigos, os Apolis, os Estrangeiros, os Sem-Abrigo, os Vagabundos sentados eram espancados à bastonada, eram arrastados por terra pelas axilas, eram levados para dentro de furgões por homens armados com bastões pretos e fardados de azul-eléctrico. Onde estão os contos em que os malditos penetravam nos palácios dizendo simplesmente aos guardas: «Sou um estrangeiro»? Estrangeiro era então a palavra mais bela e abria as portas. A hospitalidade era um dever, nem sequer uma virtude. O estrangeiro sentava-se no melhor lugar junto ao rei, à sua direita, semelhante a um sol  que aparece no mundo, comia e bebia até se fartar. Depois, virava-se para o rei perguntava:
— Sire, quereis saber porque tenho o queixo rapado e um olho a menos?
E o rei prosternava-se diante dele e dizia:
— Dizei-me! Dizei-me, meu amigo! Quais foram as vossas aventuras?

Pascal Quignard, Os desarçonados (trad. Diogo Paiva)


12.11.24

Dias rápidos

«Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir»
Pessoa/Caeiro

«Porque correm eles tanto / E não cultivam o espanto?»
Robert Walser

25.10.24

O outro lado

«O outro lado — o lado da revolta por parte da população que tem feito tumultos em vários bairros todas as noites desde segunda-feira, após a morte de cabo-verdiano — também não surpreende António Brito Guterres. Diz ser “interessante” de notar que o facto de os bens atacados — o autocarro, a paragem do autocarro, o carro do lixo — “sejam o único contacto que estas pessoas têm com o Estado”, além da polícia.»

«Há meio milhão de pessoas em risco de exclusão», Expresso


18.9.24

Amour segundo Vergílio Ferreira e Gonçalo M. Tavares

Portas arrombadas. Muito ruído. Casa não é íntima – não de toda essa intimidade de que o filme é constituído.

Mulher morta – a bomba, Hitchcock. Flashback. Sabemos que ela vai morrer. Suspense: não sabemos quando, nem como.

A calma burguesa, mas o corpo. A biologia sempre. Corpos cultos e cosmopolitas, mas sempre biologia.

Condição frágil, vulnerabilidade. Não. Somos fortes, emitimos força. Caídos não aceitamos. Indignidade: urinar. A natureza ganha sempre e por muitos.
Não suportar a ausência de autonomia.

Nascemos entre fezes e urina – Santo Agostinho. Regressar ao silêncio e à fisiologia. Que nunca nos deixaram.

“Eu a lavar, tu a sujares.” E desenvolve: “Cresce o pêlo onde não deve como uma vegetação de ruína, cresce tudo o que é estúpido, porque a estupidez tem muita força, segue a direito, não muda de direcção.” 
“Ode ao meu corpo”, Vergílio Ferreira.
“Só o cheiro, ah, tu cheiras tão mal. É o teu modo imediato de falar, de te anunciares.” Idem

Cheiro e cinema, arte da visão, muito mais abstrata do que um corpo. É que o cheiro, além de não poder ser visto, dificilmente pode ser imaginado. Pelo menos, a repulsa está ausente de qualquer imaginação.

O cheiro está sempre presente, é a marca do corpo autónomo, do corpo orgânico que faz a sua vida paralela à nossa vida e à nossa vontade: “Para te calares é que eu te lavo” (idem). 

Eis, pois, a água como elemento de esquecimento: a água como algo que surgiu para nos esquecermos do corpo, para nos esquecermos do seu cheiro. “O homem tem muitos recursos e inventou outros cheiros para calar o teu”, mas “nesta luta desigual”, escreve Vergílio Ferreira, “és tu sempre o vencedor”. 
A velhice: desobediência sem quartel do corpo.
O cheiro do corpo morto, aliás, assim o demonstra. O organismo parece exigir a posse da última palavra; como o herói que sente necessidade de ser ele a terminar; como o protagonista: o corpo, mesmo no fim, não deixa de cheirar. E mais: o cheiro aumenta.

Continuar assim é absurdo. Não quero continuar, diz. Ele: sim, podia ter sido eu. Não quero pôr-me no teu lugar, estou cansada. 
O discernimento não é compatível com o cansaço; muito menos com o esgotamento, com a náusea permanente.
Aqueles momentos tensos de Haneke: visita do pianista.

Filha fala de dinheiro. Senhora com soro. Moribundo quer mais tempo. O resto é irrelevante.
Cuidados de saúde, terceira idade — que dignidade? A importância da diligência técnica. Amor, cuidado, zelo. Sim. Mas com a dignidade que é o corpo ser menos ostensivo nas suas falhas e nos seus cheiros.

Casa: servil aos caprichos e necessidades do corpo. Espaço para dormir, para comer, para fazer necessidades fisiológicas. Espaço culto, espiritual, que transcende o corpo: a sala com livros e piano. Casa anatómica, não espiritual.
“Um quarto de banho é uma homenagem à tua grosseria, um templo em que executamos o ritual da tua miséria” (Vergílio) .

Se olharmos, de facto, atentamente para uma casa, para a sua constituição, poderemos quase ver o corpo para o qual foi construída. Como se em vez de estarmos a olhar para uma casa estivéssemos a olhar para um mapa da anatomia humana. As suas dependências: a cozinha (alimentação), a casa de banho, o quarto com a cama que o sono exige, etc., etc. A casa é o retrato das nossas dependências físicas.
Máquinas são próteses. Substituem membros, órgãos, funções do corpo.

Porém, o corpo também já não é assim tão-só corpo, pois “tapou-se com o progresso da cultura”, diz Vergílio Ferreira. Tapou-se: escondeu-se um pouco, mas protegeu-se também; civilizou-se.
O nosso próprio corpo (e não apenas por causa da cultura) é para nós obscuro: que voz é esta, a minha? Que mãos são estas, são as minhas? Que gesto é este?

E não só o nosso, também o corpo dos que nos são próximos é algo a que não damos a suficiente atenção, algo que não chegamos a conhecer: “Não conhecemos normalmente a cor dos olhos dos amigos, porque lhe conhecemos quase só o olhar”, refere Vergílio Ferreira, lembrando Sartre.

Que imagem tenho eu, já agora? – pergunta ele. És um monstro, mas também és bom – respondeu ela.
“Um homem gosta de beijar a boca de uma mulher, mas não de se servir da sua escova de dentes. Porque o beijo na boca fala de amor, e a escova de dentes do pobre lixo dessa boca” (Vergílio).

Não há belo e feio, há belo no feio e feio no belo. Como se o corpo, a matéria, certas vezes ganhasse características inefáveis e o Espírito, por vezes, pudesse cheirar mal. 

Quando nada na existência pode depender já de mim. Nem uma dimensão material, nem espiritual. É esse o prelúdio da morte em que somos espaço e peso puramente. Só as circunstâncias falam, nós calamos e assistimos. 

Podes ir. Não vou desmoronar, disse ela, no início da nova fase da vida. Fé louca na vida; corpo, derrotado, não o percebe ainda, nem aceita.

Canetti: “Nenhum massacre nos protege do próximo” — corpo prossegue os seus trâmites de declínio.
“Uma dor tão grande que já não nos relacionamos com nós próprios” — outro apontamento de Canetti. Nós, uma memória de nós próprios que já esquecemos. O corpo apenas externo, ele próprio.

Arrogância dos imortais-tontos que se movimentam ao som das moedas. Aproximar-se para ouvir vantagem possível, não para dar calor (diálogos com filha). Claro que a filha, além do que é, é memória do que terão sido os seus pais.

Música, um outro silêncio. O que buscamos, desejamos: silêncio primordial. O espírito faz-se ouvir pelo corpo. O corpo esquecido; o corpo ostensivamente presente antes da morte.

Corpo a necessitar de limpeza rápida e de assistência para o mínimo gesto. Corpo que, no limite, nem consegue lutar com formigas, afastá-las. Arte ainda é feita pelo estrume: estrume que faz, o corpo. Nunca deixamos de ser biologia.

Já com bem menos autonomia, o contacto com a água. O exterior existe e dói, mesmo doce e quente, água domesticada e morna. “A água quente lembra-me todas as manhãs / que não tenho mais nada vivo ao pé de mim”. Yorgos Seferis.

O mundo mais doce: não como toque possível, bom toque, nos solitários. Mas toque violento. Dor é tudo o que venha do mundo, e ainda do corpo que ainda somos.

Sempre dizem algo – diz cuidadora. Mamã, mamã, mamã. O sem sentido dadá. Avança a enfermeira. Já não somos um, mas espécie. A espécie fala pela dor. A sua esposa já não é uma; já o mundo pôs as suas mãos em cima.

Na ponte de Avignon, dança-se, dança-se. Olhos esforçadamente abertos, rosto que se contorce para levantar as sobrancelhas bem alto, como um céu mais humano que a cabeça. Esforço épico para a alegria. Dança das sobrancelhas, rosto que se levanta.

Confronto muito duro e impassível com a nossa condição, o de Haneke. É difícil ver a agonia e o esforço que chega ao lugar da alegria. Nenhum outro fim.

Estalo à esposa, Anne, que não queria beber água. Cena que define Haneke. A tensão súbita, o susto, após sequências e comportamentos serenos, repetitivos. Ela bebe após o castigo. Querer estar vivo por coação, à força. A água com o sangue entra, como a letra.
Toque da filha. Humanos, calor, toque.

Filme sobre a bondade, sim. E sobre a maldade: uma vida boa pode ter um mau comportamento.
Pôr fim à vida que resiste, não se deixa ir. Não se deixa ir. A vida é o que não se deixa ir.
Que vida para além da morte da esposa? Matar em nome de outro fim? Que descanso ôntico? Não sabemos. Ou pôr um fim ao sofrimento. A dor do outro existe sem mim. Compaixão enquanto “unidade no sofrimento” não pode existir plenamente. Roubar definitivamente a dor do outro – eis o amor, quem sabe.

“Se a ligação ética começa sempre que olhamos alguém como se fosse um deficiente, e prossegue na medida em que nos descobrirmos a nós mesmos como deficientes, é natural que esse movimento seja também acompanhado por este desejo de desertarmos de nós próprios para existirmos olhando de fora a nossa precariedade” — Luís Mourão, “Entre um e a multidão”.
“O que não deixa de ser curioso, porque visto do ângulo da hipótese do amor (amor humano, amor do mundo), a impossibilidade da autossuficiência é a grande bênção.” Idem


5.8.24

«The boss hires»

I want a man who has nothing to gain.
I want his face to say: nothing more is to be lost.
I want to see from his hands:
That he shall not mind the hours,
That he shall stay on, that the pay will never be just.

Charles Simic

Ideia do comunismo

Ideia do comunismo

Na pornografia, a utopia de uma sociedade sem classes manifesta-se através do exagero caricatural dos traços que distinguem essas classes e da sua transfiguração na relação sexual. Em nenhum outro contexto, nem sequer nas máscaras de carnaval, se insiste com tanta obstinação nas marcas de classe da indumentária, no próprio momento em que a situação leva à sua transgressão e anulação, da forma mais despropositada. As toucas e os aventais das criadas de quarto, o fato-macaco dos operários, as luvas brancas e os galões do mordomo, e mesmo, mais recentemente, as batas e as máscaras das enfermeiras, celebram a sua apoteose no instante em que, estendidos como estranhos amuletos sobre corpos nus indestrinçavelmente enroscados uns nos outros, parecem anunciar, com um toque estridente de trombeta, aquele último dia em que eles terão de apresentar-se como sinais de uma comunidade ainda não anunciada.
Só no mundo antigo se encontra qualquer coisa de semelhante a isto, na representação das relações amorosas entre deuses e homens, que constituem uma fonte inesgotável de inspiração para a arte clássica na sua fase final. Na união sexual com um deus, o mortal, vencido e feliz, anulava de um golpe a infinita distância que o separava dos imortais; mas, ao mesmo tempo, esta distância restabelecia-se, ainda que invertida, nas metamorfoses da divindade em animais. O meigo focinho do touro que rapta Europa, o bico sagaz do cisne inclinado sobre o rosto de Leda, são sinais de uma promiscuidade tão íntima e tão heróica que se nos torna, pelo menos durante algum tempo, insuportável.

Se procurarmos o conteúdo de verdade da pornografia, imediatamente ela nos mete diante dos olhos a sua ingénua e simplista pretensão de felicidade. A característica essencial desta última é a de ser exigível a qualquer momento e em qualquer ocasião: qualquer que seja a situação de despedida, ela tem infalivelmente de acabar com a relação sexual. Um filme pornográfico no qual, por um qualquer contratempo, isto não acontecesse, seria uma obra-prima, mas não seria um filme pornográfico. O strip-tease é, neste sentido, o modelo de toda a intriga pornográfica: no início temos sempre e apenas pessoas vestidas numa determinada situação, e o único espaço deixado ao imprevisto é o do modo como, no fim, elas têm de reencontrar-se, agora sem roupa. (Nisto, a pornografia recupera o gesto rigoroso da grande literatura clássica: não pode haver espaço para surpresas, e o talento manifesta-se nas imperceptíveis variações sobre o mesmo tema mítico). E com isto pusemos a nu também a segunda característica essencial da pornografia: a felicidade que ela exibe é sempre circunstancial, é sempre uma história e uma ocasião que se aproveitam, mas nunca uma condição natural, nunca qualquer coisa de já dado. O naturismo, que leva a tirar a roupa, é desde sempre o adversário mais aguerrido da pornografia; e do mesmo modo que um filme pornográfico sem acontecimento sexual não teria sentido, também dificilmente se poderia qualificar de pornográfica a exibição pura e simples do sexo no ser humano.
Mostrar o potencial de felicidade presente na mais insignificante situação quotidiana e em qualquer forma de socialidade humana: essa é a eterna razão política da pornografia. Mas o seu conteúdo de verdade, que a coloca nos antípodas dos corpos nus que enchem a arte monumental do Fim-de-século, é que ela não eleva o quotidiano ao nível do céu eterno do prazer, mas exibe antes o irremediável carácter episódico de todo o prazer, a íntima digressão de todo o universal. Por isso, só na representação do prazer feminino, cuja expressão é visível apenas no rosto, ela esgota a sua intenção.

Que diriam os personagens do filme pornográfico que estamos vendo se pudessem, por seu turno, ser espectadores da nossa vida? Os nossos sonhos não podem ver-nos — e esta é a tragédia da utopia. A confusão entre personagem e leitor — boa regra de toda a leitura — deveria funcionar também aqui. Acontece, porém, que o importante não é tanto aprender a viver os nossos sonhos, mas sim que eles aprendam a ler a nossa vida.

“Um dia se mostrará que o mundo já há muito tempo que possui o sonho de uma coisa, da qual apenas precisa de ter consciência para a possuir verdadeiramente”. Certamente que sim — mas, como se possuem os sonhos, onde é que estão guardados? Porque aqui não se trata, naturalmente, de realizar alguma coisa. Nada é mais entediante do que um homem que tenha realizado os seus sonhos: é o zelo social-democrático e sem gosto da pornografia. Mas tão pouco se trata de guardar em câmaras de alabastro, intocáveis e coroados de rosas e jasmim, ideais que, ao tornar-se coisas, se quebrariam: esse é o secreto cinismo do sonhador.
Roberto Bazlen dizia: aquilo que sonhámos é qualquer coisa que já tivemos. Há tanto tempo, que já não nos recordamos disso. Não num passado, portanto — já lhe perdemos os registos. Os sonhos e os desejos não realizados da humanidade são antes os membros pacientes da ressurreição, sempre a ponto de despertar no dia final. E não dormem fechados em preciosos mausoléus, mas estão pregados, como astros vivos, ao céu remotíssimo da linguagem, cujas constelações mal conseguimos decifrar. E isso — pelo menos isso — não o sonhámos. Ser capaz de apanhar as estrelas que, como lágrimas, caem do firmamento jamais sonhado da humanidade — essa é a tarefa do comunismo.

Giorgio Agamben, Ideia da prosa, trad. João Barrento

29.7.24

Sob ocupação nazi

Podem tornar-nos as coisas algo complicadas, podem roubar-nos alguns bens materiais, alguma aparente liberdade de movimentos, mas somos nós que cometemos o maior roubo a nós próprios, roubamo-nos as nossas melhores forças através da nossa mentalidade errada. Através de nos sentirmos perseguidos, humilhados e oprimidos. Através do nosso ódio. Através da fanfarronice que esconde o medo. Bem podemos às vezes sentirmo-nos tristes e abatidos por causa daquilo que nos fazem, isso é humano e compreensível. Porém: o maior roubo que nos é feito somos nós mesmos que o fazemos. Eu acho a vida bela e sinto-me livre. Os céus dentro de mim são tão vastos como os que estão por cima de mim. Creio em Deus e creio na humanidade, e aos poucos vou-me atrevendo a dizê-lo sem falsa vergonha. A vida é difícil, mas isso não faz mal. Uma pessoa deve começar a levar-se a sério e o resto segue por si mesmo. E «trabalhar a própria personalidade» não é certamente um individualismo doentio.

Etty Hillesum, Diário 1941-1943