Tal como um povo não sofre os maiores
prejuízos, que a guerra e a prontidão para a guerra acarretam, através das
despesas de guerra, das estagnações no seu modo de viver, nem tão-pouco através
da manutenção de um exército permanente — embora tais perdas sejam grandes
também agora, quando oito Estados da Europa gastam com isso a soma de dois a
três bilhões anuais —, mas sim com o facto de que ano a ano os homens mais
capazes, mais vigorosos, mais trabalhadores são removidos em número extraordinário
das suas ocupações e profissões, para se tornarem soldados: de igual modo, um
povo que se dispõe a praticar a grande política e a garantir uma voz decisiva
entre os Estados mais poderosos não experimenta as suas maiores perdas onde
geralmente as encontramos. É verdade que a partir desse momento ele sacrifica
muitos dos talentos mais eminentes no “altar da Pátria” ou da ambição nacional,
quando previamente, antes de serem devorados pela política, esses talentos
tinham outras esferas de acção diante de si. Mas além dessas hecatombes
públicas, e, no fundo, bem mais tremendo que elas, dá-se um espectáculo que continuamente
se desenrola em cem mil actos ao mesmo tempo: todo o homem capaz, trabalhador,
inteligente, esforçado, pertencente a um povo ávido de glórias políticas, é
dominado por essa avidez e não mais se dedica inteiramente ao seu próprio negócio:
as questões e os cuidados relativos ao bem público, diariamente renovados,
consomem um tributo diário do capital de coração e mente de todo o cidadão: a
soma de todos esses sacrifícios e perdas de energia e trabalho individuais é tão gigantesca que o florescimento político de um povo quase necessariamente
acarreta um empobrecimento e debilitação espiritual, uma menor capacidade para
obras que exigem grande concentração e exclusividade. E enfim é lícito
perguntar: vale a pena, então, toda essa prosperidade e esplendor do conjunto
(que, no entanto, até só aparecem à luz do dia enquanto receio dos outros
Estados perante o novo colosso e enquanto protecção, arrancada ao estrangeiro,
da prosperidade nacional em matéria de comércio e comunicações), se a essa Flor
da Nação, grosseira e cambiante, têm de ser sacrificadas todas as plantas e ervas
mais nobres, delicadas e espirituais, de que, até então, o seu solo era tão
rico?
Friedrich Nietzsche, Humano, demasiado humano
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