5.12.15

Leituras à sexta

1. Relevo a evocação do cineasta polaco Krzysztof Kieslowski feita por Luís Miguel Oliveira, a propósito da re-exibição da trilogia Três cores (Azul, Branco e Vermelho) e A dupla vida de Verónica. Realço Azul, filme sobre a liberdade (Branco, dedicado à igualdade, por seu turno Vermelho, à fraternidade) com Juliette Binoche (Julie) como protagonista. Diz a psicologia que o azul é a cor da introspecção. A presença obsidiante da cor no filme não só nos conduz à intimidade de Julie como parece acentuar a pungência da música composta por Zbiegniew Preisner. Como sair da noite do mundo, como atravessar um processo de destituição subjectiva? Como nos religamos aos outros, perdido o vínculo, quase devorados pelo vazio, pela ausência de sentido das coisas? Mais a mais num momento particularmente excitante, como sublinha Luís Miguel de Oliveira - a união da Europa? Porventura reconhecendo que o falharmos é da nossa natureza. Talvez atravessado esse período de desvinculação, percebamos que atribuir sentidos às coisas é uma ficção da qual não podemos prescindir sob pena de perdermos definitivamente o equilíbrio sócio-simbólico. Ok, as coisas em si não têm nenhum sentido, vivemos desta forma como poderíamos viver de outra qualquer, tudo é profundamente contingente, o amor reduz-se aos caprichos da carne - e apesar disso como necessitamos de cobrir tudo isso com um manto inefável de linguagem, de suavizar o real excessivo com a doçura apolínea.



2. Ao contrário de Vanessa Rato, não considero que observar o ser humano de uma perspectiva cósmica seja estar já para além da melancolia. Acho que é ir mais fundo nela, é conceber que ao esgotamento da nossa civilização se seguirá uma espécie de fim, ou um infindo epitáfio, a modernidade.

3. António Guerreiro recenseia O conceito de político de Carl Schmitt, com tradução de Alexandre Franco de Sá, provavelmente o tradutor mais preparado para a tarefa. Carl Schmitt foi um nazi e jurista do Terceiro Reich. Foi este jurista que, estribado numa concepção antropológica negativa, de cariz hobbesiano, estabeleceu que as relações entre os Estados são do tipo amigo/inimigo. Para além disso, desenvolveu uma noção de soberania que, como assinala António Guerreiro, tem sido co-optada por autores de esquerda para uma compreensão das democracias ocidentais. Se o "soberano é o que decide sobre o estado de excepção", isso significa que o soberano está além da lei, está dentro e fora dela. Esta noção é muito importante para entender o que foram os últimos anos da Europa, por exemplo. Mas o reverso simétrico do soberano é o pobre, o refugiado, o louco, que também parecem estar dentro e fora da lei, cidadãos cujos direitos podem ser arbitrariamente suspensos. Um livro essencial que incluo numa família de filósofos como Bataille, Foucault, Agamben, Zizek, Santner, Esposito, Badiou, pese embora existam diferenças (incomensuráveis, por vezes) entre cada um deles. E uma tradução tardia.

4. No seu espaço habitual, António Guerreiro discorre sobre a relação entre poesia e terrorismo. Depreendo da sua crónica que o último livro de Joaquim Manuel Magalhães é um gesto radical que incompreensivelmente cauciona tudo o que durante anos combateu. Tanta combatividade, tanta guerrilha, para no fim criar uma obra que poderia ter sido uma das plaquetes de Poesia 61: desconexão sintáctica, privilégio do substantivo, rasura de adjuntos como advérbios ou adjectivos, impessoalidade, rarefacção, a poesia como trabalho radical sobre a forma. Enfim, a herança do modernismo, que autores como Gastão Cruz, Fiama Hasse Pais Brandão ou Luiza Neto Jorge tinham por crucial para uma liberdade cerceada pelo neo-realismo. Como interpretar Um toldo vermelho, que abandonou princípios da narratividade, da sinceridade, até da sátira sócio-política, num estilo que se pretendia (mais) comunicante, tendo por modelo o 1.º Romantismo Inglês e autores coevos como Philip Larkin? Se Joaquim Manuel Magalhães manteve uma guerrilha com uma forma de escrever poesia, durante as décadas de 70 e 80 sobretudo, não é menos terrorista a edição de Um toldo vermelho. Terrorista no sentido em que força uma reflexão sobre a produção poética actual, que estagnou numa melancolia quotidiana e num estilo domesticado, confessional-açucarado, sem experimentalismo algum, pejada de moralina, atravessada por uma sensibilidade kitsch num registo comunicativo quase nada distinto do estilo corrente. Terrorista porque ainda hoje não foi compreendido, porque se mantém inabsorvido, forçando questões fundas sobre o sentido: "Em sociedades reduzidas a falta de clareza e excessos, o terror é o único acto com significado. Há demasiado de tudo, mais coisas e mensagens e significados do que o que poderíamos utilizar em dez mil vidas. Inércia-histeria. Será a história possível? Será alguém sério? A quem levamos a sério? Apenas o doente letal, a pessoa que mata e morre pela fé. Tudo o mais é absorvido, o artista é absorvido, o louco da rua é absorvido, processado e incorporado. Dêem-lhe um dólar, metam-no num anúncio de televisão. Apenas o terrorista se mantém à parte. A cultura não descobriu como assimilá-lo." (DeLillo, Mao II) Não só desapareceu essa confrontação estética do camp literário (no máximo há invectivas de natureza moral), como desapareceu o essencial: a experimentação, a procura de novos caminhos.

5. Um autor que merecia tal excelente tradução era Friedrich Schlegel. Crítica é não só um esforço de compreensão das obras literárias, como um esforço de compreensão tout court. Viver é um exercício crítico: ler, inferir, interpretar. E em crise de sentido permanente: "O conceito de crítica aqui em causa não é uma forma de dizer, repetir ou descrever as obras, mas é uma forma de completar a própria obra, como escrever Schlegel, rejuvenescê-la, dar-lhe forma de novo." Claro que uma boa obra, como uma boa metáfora, é imparafraseável; a crítica é errar, no sentido de erro (não há interpretações verdadeiras nem falsas) e errância (pelas margens do texto). E todavia, ampliando a obra criticada, calafetando-a, ela vive, e sem necessitar de observações judicativas: "Schlegel ensina-nos que a crítica é esse duplo movimento de aproximação e afastamento que não interrompe o sentido de uma obra - através da fixação de um significado, de uma interpretação ou de um valor -, mas prolonga e intensifica a permanência da arte no mundo."

6. O que vemos quando lemos. Ler é imaginar, é criar imagens. Ler é ver. Gonçalo Mira recenseia o livro de Peter Mendelsund levantando questões interessantes. Lidos Os Maias, e apesar dos esforços de Eça de Queirós, permanece a questão: como é Maria Eduarda? E Carlos da Maia? E Pedro? Como os imaginamos? Isto apesar de descrições extensas bem para lá do limite de tédio estabelecido pelo adolescente comum. Gonçalo Mira reflecte sobre a seguinte questão: nenhuma descrição, por mais exacta e profusa que seja, nos faz ver o que o autor quer que vejamos. Porque o leitor cria expectativas, deseja, possui memória. Daí acharmos sempre que um filme fica aquém do livro, pois o cineasta escolhe apenas uma mulher para representar a Maria Eduarda, enquanto cada leitor tem outra Maria Eduarda na cabeça. O cinema, nesse sentido, é totalitário, impõe uma imagem, enquanto a literatura sugere uma imagem. (Uma palavra vale mais do que mil imagens. O que vemos quando nos deparamos com a palavra 'casa', por exemplo? Cada um vê uma casa diferente.) No meu caso, a imagem de Maria Eduarda ficou muito influenciada pela descrição do narrador após ambos cometerem incesto voluntariamente: "Fora depois a aquele corpo dela, adorado sempre como um mármore ideal, que de repente lhe aparecera, como era na sua realidade, forte de mais, musculoso, de grossos membros de amazona bárbara, com todas as belezas copiosas do animal de prazer. Nos seus cabelos de um lustre tão macio, sentia agora inesperadamente uma rudeza de juba. Os seus movimentos na cama, ainda nessa noite o tinham assustado como se fossem os de uma fera, lenta e ciosa, que se estirava para o devorar... Quando os seus braços o enlaçavam, o esmagavam contra os seus rijos peitos túmidos de seiva, ainda decerto lhe punham nas veias uma chama que era toda bestial." Short movies, de Gonçalo M. Tavares, explora estas questões, através de micro-contos construídos com frases sem elementos acessórios (advérbios e adjectivos), potenciando ao máximo a imaginação dos leitores. Outra estratégia é a de Javier Marías: a descrição nos seus romances é o reconhecimento de que, como escreve Gonçalo Mira, "apreciar uma descrição não significa que esta evoque uma 'visão mais nítida'". Por vezes uma descrição detalhada é inclusivamente uma forma de obnubilar mais a visão. Discordo de um ponto, contudo: "Se a imaginação é, em grande medida (totalmente?), construída e/ou condicionada pela memória, este acumular de memórias visuais (da televisão, do cinema, dos videojogos) não estará antes a enriquecer a nossa capacidade imaginativa?" Não. Imaginar é criar imagens. O aluvião diário de imagens que recebemos bloqueia a imaginação, satura-a, não permite que a nossa capacidade imaginativa funcione. Se demasiado expostos, tornamo-nos somente receptores, e não produtores de imagens. É nesse sentido fulcral uma "pedagogia da imagem", tal como sugerido por Italo Calvino numa das Seis propostas para o próximo milénio.

7. Ser libertário hoje? Sim, com decência, com limites, Excelência. Num século limpinho como este, Fernando Pessoa, por exemplo, era internado num manicómio, não havia editor que lhe pegasse (pelo menos antes de fazer prova empírica e poética de belos sentimentos):

Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos — e eu acho isto belo e amo-o! —
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosamente gente humana que vive como os cães
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!

("Ode triunfal", publicado em Orpheu n.º 1)



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