Bernardo Soares era guarda-livros – com
uma outra vida de reflexão metafísica. Bom dia, senhor Vasques, bom dia.
Lacónico porque especulativo, o mundo desintegrando-se para dentro. Ainda assim condescendente
com o quotidiano, às vezes até desejando-o, e não somente dele se servindo para
estética. O escrivão Bartleby, pelo contrário, não tolerava o bom dia, sim,
sim, patrão, ora, ora, conte lá mais anedota. Fazia o que tinha a fazer – até
que. Não. Não, não, não. Sem explicações, sem descrições. Mundo de copista que
a modernidade trucidaria. E todavia – um gesto heróico, dramático, desesperado,
reiterando aquele mundo, menos técnico, mais honesto porventura.
Ambos com vidas invisíveis – embora
tenhamos o privilégio de conhecer o Livro
do desassossego. Mas vida invisível temo-la todos: a ética. E ainda o que
nos liga a outros – avaliações, julgamentos, punições. Vida invisível é o que
da nossa vida não é visto pelos outros, passe a tautologia – não apenas os
gestos em espaços que não são públicos, mas o que nos move, a intimidade,
digamos assim. Nenhuma imagem a trará de volta, disse ele. Andei sempre à procura
dela. Ninguém adivinharia. Houve uma separação – que criou o funcionário. Leis,
funções, rituais – ordem, alguma. António, um outro exemplo. Dias e dias
iguais, previsíveis, ruas em que o amor não se encontra. Leis, funções, rituais
– ordem, alguma. A vida invisível é passado: uma hipótese. E todos aqueles diálogos
possivelmente imaginados. Temos de lidar com muitas vozes, presenças
espectrais, dúvidas, hesitações, expectativas – com a sombra do que supomos
Grande Outro. A mística do solteiro com redenção pela mobília – com o
suplemento da previsibilidade no trabalho. Uma máquina, ora pois. A imagem foi
– terá sido – a pedra na engrenagem, a vida invisível de António. O visível é
exangue, é a morte, pois – os cumprimentos, os deveres, o simbólico.
António tinha essa vida – estranho. Pensava que António era só um fantasma,
perdão, um funcionário.
Disse que este funcionário não fazia
metafísica. Mas havia uma tabacaria do outro lado da rua? Pois, não há o
consolo do contra-campo, e isso abre campo a – especulação. Mais campo, ou
melhor. Via o mundo de cima, da janela, lugar propenso ao menoscabo do terreno.
À metafísica. E para além disso uma janela é um espelho, e aproximação
(distante, porventura imbele, mas aproximação) aos outros. Espécie de desejo de
ligação segura, e ainda um local de estudo, de observação.
Mas afinal talvez esteja mal disposto, é
isso, devo estar mal disposto.
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