24.7.15

A vida invisível de Vítor Gonçalves







Bernardo Soares era guarda-livros – com uma outra vida de reflexão metafísica. Bom dia, senhor Vasques, bom dia. Lacónico porque especulativo, o mundo desintegrando-se para dentro. Ainda assim condescendente com o quotidiano, às vezes até desejando-o, e não somente dele se servindo para estética. O escrivão Bartleby, pelo contrário, não tolerava o bom dia, sim, sim, patrão, ora, ora, conte lá mais anedota. Fazia o que tinha a fazer – até que. Não. Não, não, não. Sem explicações, sem descrições. Mundo de copista que a modernidade trucidaria. E todavia – um gesto heróico, dramático, desesperado, reiterando aquele mundo, menos técnico, mais honesto porventura.
Ambos com vidas invisíveis – embora tenhamos o privilégio de conhecer o Livro do desassossego. Mas vida invisível temo-la todos: a ética. E ainda o que nos liga a outros – avaliações, julgamentos, punições. Vida invisível é o que da nossa vida não é visto pelos outros, passe a tautologia – não apenas os gestos em espaços que não são públicos, mas o que nos move, a intimidade, digamos assim. Nenhuma imagem a trará de volta, disse ele. Andei sempre à procura dela. Ninguém adivinharia. Houve uma separação – que criou o funcionário. Leis, funções, rituais – ordem, alguma. António, um outro exemplo. Dias e dias iguais, previsíveis, ruas em que o amor não se encontra. Leis, funções, rituais – ordem, alguma. A vida invisível é passado: uma hipótese. E todos aqueles diálogos possivelmente imaginados. Temos de lidar com muitas vozes, presenças espectrais, dúvidas, hesitações, expectativas – com a sombra do que supomos Grande Outro. A mística do solteiro com redenção pela mobília – com o suplemento da previsibilidade no trabalho. Uma máquina, ora pois. A imagem foi – terá sido – a pedra na engrenagem, a vida invisível de António. O visível é exangue, é a morte, pois – os cumprimentos, os deveres, o simbólico. António tinha essa vida – estranho. Pensava que António era só um fantasma, perdão, um funcionário.
Disse que este funcionário não fazia metafísica. Mas havia uma tabacaria do outro lado da rua? Pois, não há o consolo do contra-campo, e isso abre campo a – especulação. Mais campo, ou melhor. Via o mundo de cima, da janela, lugar propenso ao menoscabo do terreno. À metafísica. E para além disso uma janela é um espelho, e aproximação (distante, porventura imbele, mas aproximação) aos outros. Espécie de desejo de ligação segura, e ainda um local de estudo, de observação. 
Mas afinal talvez esteja mal disposto, é isso, devo estar mal disposto.



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