10.11.13

Notas inúteis sobre crítica literária

1. A crítica é interpretação, convém lembrar.

2. A escolha da obra deverá ser julgamento suficiente. É estéril e embrutecedora a conversa gosto/não gosto.

3. Uma negação gera, inexoravelmente, uma denegação. Quem lê um livro mau, podendo estar a ler um livro bom, julga-se imortal. Noutros termos: não há boa nem má publicidade, só há publicidade.

4. Influenciar-se-ão leitores através não só da seleção do objeto sobre que se debruça o texto crítico, como do exemplo (pensar é preciso, ainda que mal).

5. Não há interpretações verdadeiras nem interpretações falsas - só há interpretações erradas (em duplo sentido: de erro e de errância).

6. Nesse sentido, o crítico deverá ser um (mau) ortopedista. Jamais alguém com a língua afiada, senão ocasionalmente.

7. São dirigidas muitas farpas à crítica literária universitária - há outra? - fundadas em clichês. Por alto e com lacunas: Gustavo Rubim, Luís Mourão, Eunice Ribeiro, Rosa Maria Martelo, Pedro Eiras, Manuel Gusmão, Silvina Rodrigues Lopes, Joana Matos Frias, Rita Patrício, Paula Morão, Isabel Cristina Mateus, Osvaldo Silvestre, Luís Quintais, Pedro Serra, Carlos Mendes de Sousa, Aguiar e Silva, Anna Klobucka. Para não falar em Américo Lindeza Diogo ou no saudoso Eduardo Prado Coelho. Decerto, gente que nada tem a dizer, que defende acerrimamente as Autoridades Literárias e que se intitula guardiã do Bom Gosto - e do Bom Senso, já agora.

8. Pelos suplementos de jornais e em revistas como a Ler praticamente não se faz crítica literária, faz-se divulgação cultural. Que pode ser positiva ou negativa. Monta-se o tribunal e julga-se a obra.

9. Quem lê textos de divulgação cultural forma um juízo de gosto, raramente acede a uma interpretação dalgum livro. Muito raramente, aliás. É esta a função da divulgação. Ficará o leitor, quando muito, com uma impressão daquilo que vale a obra, o que tem uma importância relativa.

10. Consecutivamente, entram os divulgadores na lógica dos rankings (estrelas e quejandos), fazendo ainda incursões pela sociologia da literatura (é por isso que tipos como João Pedro George têm fama por esses meios): o que é lido, quem lê o quê, porque é que lê, porque é que determinado autor não é lido.

11. A crítica deve centrar-se no texto e não na biografia do autor. (Já agora, isto implicará, por sua vez, uma visão da própria literatura). Daí a predileção de muitos divulgadores por João Gaspar Simões, cujo exercício crítico ignorou o essencial dos postulados modernistas.

12. Leio a maior parte dos textos de divulgação cultural para me inteirar daquilo que foi publicado recentemente, raras vezes para pensar - e mais raras vezes ainda esperando pensar nos textos literários abordados. Mas também ocorrem surpresas de quando em vez.

13. Desabafo: quando quero ler sociologia da literatura, pego num Bourdieu.

14. A tarefa da divulgação cultural é formar juízos de gosto. Estou a repetir-me para adicionar o seguinte: também é essa a tarefa do "mercado". A formação do juízo de gosto não deverá ser um fim em si mesma para a crítica literária. O fim é a leitura, a interpretação.

15. Quem quiser tentar entender obras literárias, terá que ler ensaios. Que na prática são exercícios criativos, afins das obras literárias. Provindos da universidade ou não. Basta querer procurá-los e ter engenho para encontrá-los.



2 comentários:

  1. 1.o/a autor/a do texto afirma e pergunta retoricamente:
    “São dirigidas muitas farpas à crítica literária universitária - há outra?”
    E depois conclui no último ponto (15) “Quem quiser tentar entender obras literárias, terá que ler ensaios. (…) Provindos da universidade ou não.(…)”
    Em que é que ficamos, há ou não há outra critica fora da universidade?
    2. Lembro, para purgar a coisa, os versos do tio Ezra “pets-de-loup, sitting on piles of stone books,/obscuring the texts with philology,/ hiding them under their persons,…” (canto XIV). O venerável L. Diogo é um bom exemplo, mas também todos os citados, do bem intencionado Gusmão às redações da senhora Martelo.
    3. Ainda bem que me diz, tão esclarecido/a, que preciso de ler ensaios para “entender obras literárias”. O ensaio literário universitário (endogâmico, de “excelência” e pavão) é meu amigo e eu não sabia. Brigado, vou já procurar e comprar e citar.
    4. “…gente que nada tem a dizer, que defende acerrimamente as Autoridades Literárias e que se intitula guardiã do Bom Gosto - e do Bom Senso, já agora.”
    Tem razão, mesmo premiados e medalhados pelas Autoridades Literárias e etc, são todos muito puros e estupendos. Nunca avariam.
    Oiça: os citados são a Autoridade Literária, esfinges do Bom Gosto e do Bom Senso. Já agora.

    ResponderEliminar
  2. Este post não tem qualquer ambição teórica, são notas inúteis. Lança questões, de forma pouco sistemática. Ainda assim, claro, pode ser questionado.

    O ponto aqui era pensar os textos dos jornais culturais: são crítica literária, pretendem eles entender os textos literários, ou simples julgá-los – e, pelo caminho, divulgá-los?

    1. Em primeiro lugar, a pergunta não era retórica, era pergunta, de facto. Depois, com «provindos da universidade ou não» queria dizer «publicados na universidade ou não». Neste ponto 15, interessou-me a questão do género ensaio, isto é, uma forma mais longa de apertar com o texto, em contraste com as recensões exíguas de jornais e revistas culturais.
    2. Ponto prévio: a joanadosdemonios assume uma postura anti-institucional, ainda assim não evita citar um autor canónico para fazer valer as suas posições. Aliás, os próprios «Cantos» já serão, eles mesmos, uma pilha de livros. Para além de assumir essa postura, parte do princípio de que eu defendo uma postura institucionalista. Até associei ensaios à universidade. Por uma razão: o texto crítico vale pela sua natureza interrogativa, hipotética, e menos por destilar de certezas. O que leio é que são os professores de literatura das universidades que têm os textos mais estimulantes – e por vezes apaixonados – sobre literatura.
    3. Não sei exatamente o que pensa «do» Gusmão, «da senhora Martelo». «Senhora», sublinho. Produzem ensaios estimulantes.
    Esclareço que não falo de ensaios necessariamente publicados na universidade, como disse no ponto 1.
    Não disse sequer que é possível entender as obras literárias. Ler ensaios é apenas uma forma de os “tentar entender”, um suplemento da leitura. Como explica a psicanálise, só acedemos a objetos parciais – entendemos parte. Portanto, em nenhum momento disse que eles seriam a chave que abriria todas as portas do texto literário. Apenas disse que nos permitem pensá-la. Uma coisa é certa: sabemos mais se lermos os ensaios, desde que antes tenhamos lido a obra. Se são obrigados a lê-los? Claro que não. O que se publica na «Ler» ou no «Ípsilon», por seu turno, tem menos como função ser um suplemento de leitura, do que divulgar. O que, obviamente, é importante – mas pouco nos permite entender a obra.
    Endogamia? Se for esse critério, se calhar nem valerá a pena ler literatura, de tal forma muitos autores escrevem uns para os outros e se elogiam e citam publicamente. Mutatis mutandis, se olharmos para as características pessoais dos autores: Céline, Paul Valéry, Junger, etc. etc. A joanadosdemonios citou mesmo o fascista e insuportável Ezra Pound? Ou as características pessoais, como serem mais ou menos pavões, apenas são determinantes para a escolha dos ensaístas?
    4. A respeito dos prémios literários, lembro o que disse Manuel António Pina, quando recebeu o Prémio Camões. Cito de memória: «Não é por receber este prémio que passo a ser melhor poeta. Mas também não passo a ser pior.»
    Bom Senso? Bom Gosto? Adília Lopes, Manuel de Freitas, Herberto Helder, António Franco Alexandre, Helder Moura Pereira, Salette Tavares, Rui Chafes, Luiza Neto Jorge, Maria Teresa Horta, Clarice Lispector, Alberto Pimenta, Camilo Pessanha, Almada Negreiros, Maria Velho da Costa, Miguel Martins... Alguns exemplos de autores lidos pelos ensaístas citados. São estes autores a expressão do Bom Senso e do Bom Gosto, para recuperar os termos da questão coimbrã?

    E até acho uma eloquente expressão da autoridade o uso do paternalista imperativo numa troca de argumentos («oiça»). As relações entre teoria e prática são difíceis. E causam avarias, até.

    ResponderEliminar