10.7.13

Lobos

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Lobos concatena poemas de Golgona Anghel (entretanto publicados em Como uma flor de plástico na montra de um talho), de David Teles Pereira («Friedhof der Namenlosen» integrou o volume colectivo Nós, os desconhecidos e os demais poemas, reescritos para este volume, tinham sido publicados no n.º 6 de Criatura) e de Diogo Vaz Pinto (com excepção de «Lobos», que integra Bastardo, todos os poemas são inéditos). A obra começa com um poema cuja função é justificar o título da obra e nem tanto explicar o tema comum a todos os outros. Parece-me que o título deixa transparecer a amizade – o sentido de grupo, a partilha de uma comum mundividência – que entre os três poetas (civis) se estabelece, apesar de um desejo, expresso no primeiro poema, talvez escrito pelos três, de que os «fracos» (poetas?) fossem condenados por uma poesia feroz a um «recolher obrigatório» (p. 9). Os poetas são lobos também pelo que torna feroz a poesia: a vigilância incansável do animal (foi Gilles Deleuze quem comparou o escritor ao animal nestes termos). Ou ainda, como disse José Rodrigues Miguéis a propósito de Herberto Helder: «o talento é, apenas, a coragem de o ter.» E de resto, como alguns animais, também estes lobos marcam o seu território: «entre lobos / traçar a mijo o novo tratado de / tordesilhas /em tempos de afanosa / indigência» (p. 11). Este poema enuncia uma certa insurreição contra «os vagares das galinholas» (p. 13) – uma citação de Photomaton & Vox –, dos poetas que dão corda à musa e que não encaram o mundo na sua crueza. E já agora, este poema também se insurge contra as boas maneiras – sobretudo em questões de Arte. Penso assim que o sentido da citação é ligeiramente deslocado, uma vez que no texto herbertiano é assumida uma ideia de poesia enquanto descarga de energia de efeito medusante, e não apenas como processo de assassínio da tradição por parte de um poeta socialmente desvinculado («a poesia é feita contra todos», escreveu também Herberto Helder). Assim, o primeiro poema de Lobos revela ser exasperante não só que galinholas mimetizem artes poéticas já repassadas, como que uma geração esteja mergulhada numa cultura atávica. Nesta pequena cena do ódio, os alvos também são muitos, o discurso é por vezes desconexo e fragmentado, devido à ausência de pontuação e a cesuras intempestivas. O poema fecha anunciando a hora de qualquer coisa, talvez a da escrita dos poemas que compõem este livro. Eis os lobos, os que fazem da poesia um trabalho noctívago feroz, fazendo jus a Agustina Bessa-Luís, que certa vez disse que ou escreve ou mata alguém: «poesia sem ânimo é uma merda / mas um ânimo feroz / que precise matar e só assim / coma trepar / mas violentamente / a cadeia alimentar tomar / as noites a sério uma / a uma conferenciar com todas as luas / uivar longamente entre a tradição / para resgatar a nobre linhagem / a antiga pura / identidade sumptuosa» (p. 9). Uma última reflexão lupina: a epígrafe de Saint-John Perse que encerra o livro irmana a poesia com a ciência, pois ambas buscam um mistério comum, relativamente formulável, sendo que são ainda sugeridas pelo menos as seguintes duas ideias: o poeta ocupa-se do desenvolvimento moral do homem, de que o cientista se alheia, servindo-se de faculdades eidéticas; há uma luta pela verdade, isto é, verdades lutam umas contra as outras, o que sugere que todo o saber é volúvel e que a validade dele depende da força com que é imposto, e não necessariamente da cientificidade dos argumentos em que se ancore.

Singularidades poéticas

Cada poeta exibe a sua voz singular. Lobos diz respeito sobretudo a um ethos partilhável, não propriamente a um tema que fosse comum a todos os poemas que integram o livro. Segue-se um resumo sucinto do que sejam essas singularidades poéticas.
Nos poemas de Diogo Vaz Pinto, podemos reencontrar um sujeito permeável ao exterior e que procura uma identidade no meio de destroços, dizendo também como este consegue ser país um assassino (Joaquim Manuel Magalhães). O poema obedece ao seguinte princípio de construção: comporta versos de outros autores, sinalizados a itálico (Manuel António Pina também o fazia, indicando porém no final do livro os nomes dos autores pilhados). Relembre-se a lição de Eliot: os poetas fracos copiam; os fortes roubam. Na poesia de Golgona Anghel, quando os poemas não revisitam, em registo paródico, obras de autores canónicos (verbi gratia, Edgar Allan Poe e São Lucas), são assumidas personae: cidadãos indignados, comediantes de rua, trabalhadores. Há a hipótese de esta poesia se tornar um inquérito kafkiano, revelador do absurdo que habita a nossa contemporaneidade em queda. Já David Teles Pereira elabora uma poesia culturalista, a pender para a narrativa, que revisita episódios históricos e que se serve da filosofia como ferramenta hermenêutica para mais cabal compreensão – também política – daquilo que entendamos como mundo.

Alguns versos

«Livres de perucas, de guilhotinas e cavalos,
temos um leque de ideias para publicidades e tatuadores.» (Golgona Anghel, p. 20)

Antes do mais: esta poesia sabe-se em contexto pós-aurático, incorpora realidade mais prosaica, como fica lexicalmente visível, pelo caminho levando a cabo uma derrisão não só do estético como dos sentimentos açucarados esperados pelo leitor de poesia. Golgona não cede ao bom gosto médio, nem que a expensas da perda de autonomia poética, para um mundo de economia a cada dia mais agressiva, e do uso de um português demótico. Serve-se, por vezes, de aforismos: a entropia rarefaz o sentido. Hoje as ideias não se combatem através da guilhotina. Cortam-se cabeças com slogans publicitários, com o mercado despudorado (todos têm uma tatuagem, ela é acessível a cada vez mais gente). Decapitar desta forma é mais eficaz e mais limpo. Portanto, não sei se estaremos livres de qualquer coisa, ou se estamos ante outras formas de subjugação.

«e nunca são as tuas ideias o que os insectos querem,
é o teu cadáver.» (David Teles Pereira, p. 24)

Andamos nós na videirunha esquecidos de que temos corpo. Os insectos sabem ao menos o que é essencial: o teu cadáver. É com relutância que nos confrontamos com a nossa limitação, esbaforidos em busca da ideia mais rútila, esquecidos do corpo, que acabará por vergar a nossa vontade, apagar a nossa interioridade. Já não seremos mais descontínuos, o nosso corpo será devolvido ao ventre da mãe: a vontade de poder é fraca.

«Vamos falar sobre como entramos no terraço
depois de um século em abandono
e sobre como estas estações são um só lamento.» (idem, p. 25)

Cada estação é a prossecução dum ininterrupto lamento. Não há propriamente estações: elas são um. A destituição subjectiva como equanimidade. Podemos falar daquilo que ninguém fala: é essa a nossa tarefa, temos tratado o século passado com ligeireza, e nem estaremos dispostos a admitir que o que distingue para já este século é seguir-se ao século XX. Uma possível pergunta: se estivéssemos em águas-furtadas, de que falaríamos? A memória é privilégio de príncipes.

«Esta língua é um lugar perfeito e, por isso,
inóspito. É como um cemitério,
há séculos que andamos a caminhar descalços sobre corpos.» (idem, p. 26)

A perfeição não é habitável. Com autorização do deíctico, a poesia, quando estabelece uma relação não-metonímica com o mundo, torna-se espaço transcendente, bálsamo nietzschiano. É impossível coincidirmos com o que somos, sendo a língua pertença do outro por excelência. Existe uma alienação originária jamais remível. A língua é verdadeiramente heterónoma, pertença de todos e de ninguém realmente. Na verdade, a perfeição é concessão imaginária ao outro – quando não por politesse, por auto-comiseração. Ainda assim, é inferível dos versos uma origem em que o mundo fosse dito por ele próprio, que não pela língua que barra o sujeito.

«Aqui morre-se de uma morte incerta
e senil, morte que falha e se esquece.» (Diogo Vaz Pinto, p. 29)

Somos entrados onde se morre, partilhando o espaço do poeta. Todos estamos aqui. Dizem os versos desse presença ubíqua da morte. Em alguns dos poemas de Diogo Vaz Pinto, as tabernas e os bares são locais irremediavelmente marcados pela perda – os ecos das leituras de Manuel de Freitas fazem-se sentir com frequência. Neles, encontramos os que não têm voz, os milhares de anónimos cuja morte – cuja vida – é ignorada. Num poema como este donde são extraídos tais versos podemos deparar-nos com algum ser humano caído em algum buraco. Ao dar a ver esta morte quotidiana, poemas como este dizem ser essencial resistir ao individualismo mais altivo, reconhecendo-se o sujeito na alteridade, diluindo-se o sujeito devido ao compromisso com o outro que é nossa responsabilidade primordial. É também a noite, o tempo dionisíaco, que dilui não só a individualidade e a racionalidade, como a competição por elas não raro engendradas, conduzindo o sujeito lírico à imersão no informe que o mundo é. Poeta que é o flâneur para quem a cidade se converte em exílio percorrível (andando preso em liberdade pela cidade) e que ora se alarga em paisagem, ora se cerra, focando rostos tolhidos, pertencentes a um povo acostumado à partilha de servidões:

«Rostos insuportáveis de ternura, cheios
da fome e dessa sede antiga que nos
irmana. Fundidos na ressaca perpétua
de um império humilhado, são nossos
esses corpos frios que compõem o
fundo dos vossos postais. Anónimos
e, justamente por isso, tão familiares.» (idem, p. 34)

Num poema de Golgona, a persona lírica a princípio afigura-se um leitor que faz da leitura um exercício anatómico, dissecando o corpo das personagens. Abrindo-as, provando-as com o dedo como se prova uma melancia. No entanto, não podemos fazê-lo mutatis mutandis com o outro. Terá que forçosamente haver uma distância, o outro não é necessariamente penetrável, ou pelo menos não o é sem o seu consentimento, sem que ele se dê. A compreensão é uma dádiva. E assim se experiencia a resistência rebarbativa do mundo, numa perspectiva feminina do homem encerrado em si mesmo e atacado pelo exterior:

«Regresso a pé, apanho chuva,
desprezo putas, cumprimento desconhecidos.
Regresso encolhido de frio,
com a cara suja, os pés molhados.
Dás-me uma sopa quente
E adormeço na cadeira da cozinha
encostado à porta do forno
enquanto me passas a ferro a camisa
para o dia seguinte.» (Golgona Anghel, p. 36)

O mundo não se deixa agarrar. Nem com truques de prestidigitador. Aliás, o prestidigitador, como o poeta, é insciente das próprias falhas do mundo – e de si, primeiramente. Daí que a poesia de Golgona expurgue o sentimentalismo pela remoção da forma, nem cedendo tão-pouco a qualquer espécie de gravitas melancólica. A arte não alcança ser realidade, muito menos a melhorará. Em tom aforístico (o insight poético) e por vezes hermético, com a cesura a ceder ao ritmo imposto pela frase, diz-se desta «civilização em queda», sem contudo se entrar em «detalhes». Isto é, a realidade diz-se a si mesma e é irredutível. Como acontece num dos sonhos do senhor Calvino de Gonçalo M. Tavares, há a sensação de que estamos a cair: o caos é o funcionamento das coisas, percepção que derivará porventura de as coisas obedecerem a uma sucessão estocástica, e apenas nos resta procurar uma mínima ordem, ou então a «medida certa» da agonia. Eis os textos:

«Não gosto de contar os desastres em detalhe
mas, se quiserem, posso escrever uma lista com nomes e camas.

Sou bem capaz de molhar o pezinho na história da barbárie.
condecorar o medo,
cortar-me a mão com que limpo as feridas
de uma civilização em queda.

Posso perfeitamente
ir afiando o gume da esperança
com a flor branca de um cancro.

Sou, em definitivo, este comediante de rua
que serve a desconhecidos,
em copos pequenos,
a medida certa da sua agonia.
Descobre sonhos
onde outros só encontram coelhos.
Hoje, por exemplo, quando tirou as luvas,
viu que lhe faltavam dedos
.» (Golgona Anghel, p. 42)
«Do alto de mais de trinta andares, alguém atira da janela abaixo os sapatos de Calvino e a sua gravata (quem?). Calvino não tem tempo para pensar, está atrasado, atira-se também da janela, como que em perseguição. Ainda no ar alcança os sapatos. Primeiro, o direito: calça-o; depois, o esquerdo. No ar enquanto cai, tenta encontrar a melhor posição para apertar os atacadores. Com o sapato esquerdo falha uma vez, mas volta a repetir, e consegue. Olha para baixo, já se vê o chão. Antes, porém, a gravata; Calvino está de cabeça para baixo e com um puxão brusco a sua mão direita apanha-a no ar e, depois, com os seus dedos apressados, mas certeiros, dá as voltas necessários para o nó: a gravata está posta. Os sapatos, olha de novo para eles: os atacadores bem apertados; dá o último jeito no nó da gravata, bem a tempo, é o momento: chega ao chão, impecável.» (Gonçalo M. Tavares, O senhor Calvino, p. 9)

Lobos terminará com «Lobos», poema de Diogo Vaz Pinto que de certa forma, ou mais propriamente, de outra forma, refaz alguns dos princípios éticos, quase todos modernistas, enunciados no poema de ouverture: o escritor maldito; a poesia como actividade improdutiva; a poesia como epistemologia mas sobretudo ontologia; a baudelairiana descida aos infernos, num mundo marcado pela perda. Claro que tudo isto encaixa com mais propriedade na poética de Diogo Vaz Pinto, sendo discutível a partilha destes princípios por David Teles Pereira e Golgona Anghel. A respeito do último princípio que enunciei, leiam-se os seguintes versos:

« [...] Corpos
que vão escrever, dobrados à luz
da lua – a grande decapitada –, rolando
de quarto em quarto,
a assentar-nos nos ombros». (Diogo Vaz Pinto, p. 45)

Depois do convívio em torno de uma mesa, os poetas vão escrever. A escrita é actividade solitária, nocturnamente lupina. A imagem da lua decapitada é sintoma da castração: ao poeta apenas resta encher com o vazio que as palavras são um outro vazio: o mundo humano – como quem diz, não-mãe – que o mundo é.


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