3.4.13

Bastardo (I)


Talvez comece pelo seguinte verso: «num sono breve como uma prece». Um dia aturdido, mais um. Leio agora no Ípsilon a predilecção do poeta pelas leituras nocturnas, esse encontro sumptuoso com o fulgurante, essa finalidade sem fim que poderá bem ser a definição de amor. Uma actividade bem mais inútil que o sono que retempera as forças a canalizar para o trabalho. Acentuo neste verso ainda a proximidade fonética de «breve» e de «prece», a repetição de consoantes oclusivas e fricativas e das vogais semi-abertas e fechadas. Sons repetidos, como sucede numa prece, justamente. Ou num poema. Não que se trate uma poesia rendida à retórica, não, mas nem por isso desleixada: cada palavra é escolhida com ponderação.
Dias aturdidos pelo que lhes falta, por esses encontros que não se chegam a consumar: possibilidades que se esfumam. «Puta de vida subdesenvolvida», escreveu Herberto Helder. A rapariga lá se foi, com o seu «corpo estragado» e o seu «casaco de malha / desfeito sobre um vestido choroso». Realço este olhar atento e toldado pelo que se arruína. E ela que havia chegado, «finalmente». Redenção fracassada. No entanto, desconfio: talvez a sua ida venha confirmar um fracasso antecipado, talvez a «prece» também seja sentir que a redenção não chegará. Mesmo sabendo que ela acabará por não chegar, deseja-se uma redenção: a forma de que tais dias aturdidos carecem. Aquele «vestido choroso», por exemplo, uma forma de pobreza ontologicamente mais plena, digamo-lo assim. Ou aqueloutras liturgias: a lembrança dos dias passados em «antigos cafés» com «tios doidos», que falavam uma «língua desenterrada», uma linguagem arcaica que alijasse o logos, que aproximava, que tornava possível a partilha de algo comum, daquilo que é a única coisa que se aprende: a morte. O que sucedia naqueles dias vai sendo ainda hoje entendido, a aprendizagem é sempre a da morte, a da perda, não a há doutra coisa. Em Diogo Vaz Pinto, a forma (o poema um pouco longo) apaziguará o seu quê.
No mundo, como os insectos num copo, também nos sucede enlouquecer. Contudo, em certos momentos, quando desapossados de controlo, como que uma momentânea continuidade é possível, o mundo é um lugar habitável:
A rua tem-me calmo,
fecho os olhos, ouço a chuva na estrada.
Uma fraqueza num ritmo que se torna doce.

Mais tarde, ao início da manhã, ouve-se «a primeira voz dos sinos», que despertará a dor, suposta costumeira. A noite é uma promessa de mãe que não se concretiza, enquanto a luz (aparentemente) delicada da manhã é afinal violenta, cinde o sujeito, repele-o como uma mãe a um bastardo, separa o que a noite unira. O tempo de Diónisos e o de Apolo, pois.

Aos poucos, o dia vem
no seu cerco, chega de todos os lados
e a minha sombra rasteja para longe
de mim. Roubado pelos pássaros,
a manhã leva-me tudo, e empurra-me,
como a um filho indesejado, para casa.


Adenda (Béla Tarr, Sátántangó):










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