Talvez comece
pelo seguinte verso: «num sono breve como uma prece». Um dia aturdido, mais um.
Leio agora no Ípsilon a predilecção
do poeta pelas leituras nocturnas, esse encontro sumptuoso com o fulgurante,
essa finalidade sem fim que poderá bem ser a definição de amor. Uma actividade
bem mais inútil que o sono que retempera as forças a canalizar para o trabalho.
Acentuo neste verso ainda a proximidade fonética de «breve» e de «prece», a
repetição de consoantes oclusivas e fricativas e das vogais semi-abertas e
fechadas. Sons repetidos, como sucede numa prece, justamente. Ou num poema. Não
que se trate uma poesia rendida à retórica, não, mas nem por isso desleixada:
cada palavra é escolhida com ponderação.
Dias aturdidos
pelo que lhes falta, por esses encontros que não se chegam a consumar:
possibilidades que se esfumam. «Puta de vida subdesenvolvida», escreveu
Herberto Helder. A rapariga lá se foi, com o seu «corpo estragado» e o seu
«casaco de malha / desfeito sobre um vestido choroso». Realço este olhar atento
e toldado pelo que se arruína. E ela que havia chegado, «finalmente». Redenção
fracassada. No entanto, desconfio: talvez a sua ida venha confirmar um fracasso
antecipado, talvez a «prece» também seja sentir que a redenção não chegará.
Mesmo sabendo que ela acabará por não chegar, deseja-se uma redenção: a forma
de que tais dias aturdidos carecem. Aquele «vestido choroso», por exemplo, uma
forma de pobreza ontologicamente mais plena, digamo-lo assim. Ou aqueloutras
liturgias: a lembrança dos dias passados em «antigos cafés» com «tios doidos»,
que falavam uma «língua desenterrada»,
uma linguagem arcaica que alijasse o logos,
que aproximava, que tornava possível a partilha de algo comum, daquilo que é a
única coisa que se aprende: a morte. O que sucedia naqueles dias vai sendo
ainda hoje entendido, a aprendizagem é sempre a da morte, a da perda, não a há
doutra coisa. Em Diogo Vaz Pinto, a forma (o poema um pouco longo) apaziguará o
seu quê.
No mundo, como os
insectos num copo, também nos sucede enlouquecer. Contudo, em certos momentos,
quando desapossados de controlo, como que uma momentânea continuidade é
possível, o mundo é um lugar habitável:
A rua tem-me
calmo,
fecho os olhos,
ouço a chuva na estrada.
Uma fraqueza num
ritmo que se torna doce.
Mais tarde, ao início da manhã, ouve-se «a primeira voz dos sinos», que
despertará a dor, suposta costumeira. A noite é uma promessa de mãe que não se concretiza,
enquanto a luz (aparentemente) delicada da manhã é afinal violenta, cinde o
sujeito, repele-o como uma mãe a um bastardo, separa o que a noite unira. O
tempo de Diónisos e o de Apolo, pois.
Aos poucos, o dia
vem
no seu cerco,
chega de todos os lados
e a minha sombra
rasteja para longe
de mim. Roubado
pelos pássaros,
a manhã leva-me
tudo, e empurra-me,
como a um filho
indesejado, para casa.
Adenda (Béla Tarr, Sátántangó):
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