22.12.10

Filme do Desassossego, de João Botelho



Já tive coisas a dizer sobre ele, quando o vi, faz umas semanas. Parece que já não me diz nada. E isto agora diz muito das palavras: deixam de fazer sentido depois daquilo que as motiva. Têm um tempo para existir, como o resto.



Eis o que me ocorreu dizer, depois de o ver.

Filme do Desassossego, pois. Nada parece fazer tão pouco sentido, à primeira vista. A deformidade do texto pessoano, o qual nem será um texto, se entendermos qualquer texto como um tecido, naturalmente orgânico, parece pouco traduzível para cinema. De facto, uma das lições do modernismo haverá sido o entendimento do texto como entidade volúvel, o que levou à diluição das fronteiras entre os géneros. E o filme de João Botelho obedece também a esse princípio: trata-se de um conjunto de estórias, de interpretações de alguns fragmentos do Livro. Assim a lição do cinema é a da leitura, necessariamente ponto de vista, incompleta. Também é esta a da literatura: uma viagem não direccionada para um fim, em volta do mesmo ponto, do mesmo desassossego. No filme, quem fala sempre é o texto, de forma persistente, quase paranóica. A encenação é evidente e nunca se esconde; o filme exibe com ostentação a sua mentira e com isso se torna arte; se diz arte, verdadeiramente. Entramos como que numa «mise-en-scène»: os personagens não dizem o seu texto de personagem, mas o do texto como personagem. O texto precede a narrativa, ou o conjunto de micro-narrativas. Quando vemos as personagens pressupomos palavras, não sentimentos, acções inesperadas, algum fio narrativo. Mas não é sempre assim? A vida própria da narrativa é uma mentira, e o que a orienta é sempre um texto como «deus ex machina». Reside aqui, a meu ver, o aspecto mais relevante do filme: mostrar ostensivamente a sua mentira para se afirmar com mais contundência como arte, à semelhança do que havia sido o esteticismo do modernismo, uma continuação do movimento «art pour l’art» finissecular. Daí que algumas cenas de interacção social estejam imbuídas de uma intensa estranheza, decorrentes da sua pouca naturalidade. São comparáveis aos diálogos dos filmes de David Lynch, também eles estranhos (todavia, a estranheza lynchiana decorrerá da encenação que esconde aquilo que entendemos como um diálogo natural). No filme de João Botelho, o diálogo torna-se estranho à partida, por não possuir a espontaneidade que o caracterizaria; por isso, um não-diálogo. Outro aspecto semelhante entre os dois: o som fantasmagorizante que perpassa os diálogos durante um evento social (um som demiúrgico, o do Big Bang, de acordo com Zizek).
O filme abre com duas imagens: o Tejo e o tempo. Imagens fundamentais na obra de Bernardo Soares, claro. O Tejo é um símbolo de Lisboa. O Tejo do filme, todavia, não é o das Descobertas, antes o das águas paradas, o do desejo suspenso e da contemplação. O tempo, por sua vez, é o que não pode ser medido, nem pelo «relógio», que o mede espacialmente, nem pelas «sensações», que o medem subjectivamente. O pulsar inicial dos ponteiros do relógio evocam-me o mesmo som que abre um filme de Ingmar Bergman, Lágrimas e Suspiros (ainda que, no último, aquele pulsar seja mais demorado, e por isso mais lancinante). Na obra de João Botelho apenas faz sentido a reflexão sobre o tempo, pois, como Bernardo Soares nos demonstrara, tudo deve ser hiper-consciencializado. A grande doença que justifica o sobressalto permanente de Soares, inclusive com as sombras do seu quarto (o espaço do escritor na modernidade estética), é a razão. A leitura de Botelho explora esse pavor de Soares quando se confronta com as sombras; Soares, filho da modernidade técnica, também ele um sonâmbulo. Lisboa é uma cidade que proporciona ainda experiências de choque; aqui, porém, com a razão de permeio, esse intervalo excruciante que afasta o sujeito de si mesmo (donde a «angst»). Assim não temos aqui uma sensação tão pura como em Cesário Verde, este sim um sujeito verdadeiramente, porque sinceramente, permeável. Lisboa é estética, e esta está ao alcance de poucos. O encenado diálogo de Soares com Pessoa nunca poderia haver existido. A arte era acessível a poucos; logo, nem todos são capazes de haver entendido Orpheu. O filme também vive da estética: bons enquadramentos, trabalho plástico, economia nas deslocações da câmara. Depois, como as sombras vão preenchendo as personagens, não as deixando demasiado limpas, intocáveis. O jogo luz/sombra, com o seu quê de barroco, acalenta a ideia de uma morte iminente, ou quando menos a de uma corrupção imparável. Até aqui há harmonia.
O texto está omnipresente. As personagens não o dizem, parece antes que o são. Trata-se de um livro e de um filme sobre Lisboa, também. E se Soares segue as personagens não é porque delas extraia o conteúdo do livro, mas porque tem consciência de que o que vê é sempre ficção. Não é um texto que se alimenta da circunstância, pois tudo é matéria de análise e, após esta, essa matéria já não é o que era. Lisboa, assim, é a grande ficção. Ficção esta que resulta de um ensaio em busca de essências. Esta é a razão pela qual o amante nunca possui a amada, nunca a penetra, nunca toca a sua intimidade (como de resto acontecera com a impossibilidade de se tocar no «gesto da tocadora de harpa», num poema ortónimo dominado em absoluto pelo platonismo). O ascetismo é quase sempre ascensão, o que nunca se consegue carnalmente, em Pessoa (asserção que levara muito justamente alguns a apontar uma falta de plenitude na obra pessoana, por faltar corpo ao sujeito). Diga-se, por fim, que é no espaço físico da cidade que experiencia o sujeito a sua imolação, em nome da estética. É ela a sua «floresta do alheamento», isto é, a floresta onde pôde outrar-se.

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