17.7.20

Máquinas de salvação e de culpa, máquinas de amor

Podemos considerar que nenhuma máquina pode ensinar a justiça; no limite, ensinará a obediência ao seu superior, segundo uma história célebre. Nenhuma redenção num rosto convicto e límpido; uma certa seriedade que não se pode salvar, nem consegue aprender. Em linha recta não aprendes nada, disseram. A justiça é o colapso da máquina: uma linha recta pode morrer pela impossibilidade da justiça. Só podes exercê-la sem exactidão; não esquecer, todavia, que não há punição sem cegueira. A máquina pune; a justiça não conhece os caminhos da exactidão. Conhecerá outros? O caminho do disforme? Uma justiça que acontecesse em pés grosseiros, mãos que tremem, alegria, fome, avidez. Justiça errada, a única possibilidade. Através do erro encontrarás a salvação e a cegueira é comum ao erro. Os olhos abertos são, por seu turno, pórtico da morte: assassinato puro. Morres se souberes exactamente qual era o mal que praticaste; enquanto estiveres cego a respeito da tua culpa e da tua sentença, poderás viver, talvez desejar. A importância dos juízes imprecisos e silenciosos.

Uma síntese: “Mas a máquina que salva também aponta a culpa. A mão que aponta diz: tu mereces morrer por aquilo que fizeste” (Gonçalo M. Tavares, Electra). Os que buscam salvação: os culpados, os mortais, todos suspirando por essa máquina que, para além de tudo, reúne dedos apontados.

Uma história: Paul Virilio construiu uma capela em Nevers, França. Era cinzenta e sólida, inspirada na forma de um bunker; capela-bunker desenhada também de acordo com a estrutura de um coração. Capela, bunker, coração.

Pensar na crença como a única reserva segura para a vida; o coração como bunker portátil: víscera inquieta que permite avançar, raiva e amor que saltam para outros corpos. Estamos, contudo, num acidente: a velocidade é tão rápida que nem avisa e até esconde o vazio.

Por outro lado, bunker como espaço de salvação sem toque (Gonçalo M. Tavares); de outra perspectiva ainda, tentativa de fuga do medo mais terrível, espaço de liberdade.

Espaço também de morte: a sobrinha-neta de Charles de Gaulle, conta Virilio, em lugar da execução, foi enviada para um bunker por oficiais nazis. Casa preparada para que nada entre, nada saia.

Não bem um coração talvez, tantas vezes volátil. A estrutura da igreja tinha dois ventrículos: num, o coro, o coração serve para cantar, para elevar a voz e o corpo. Noutro ventrículo, estava o confessionário, explica Virilio, cristão devoto, “onde uma pessoa diz: admito, sou um completo filho da puta, mea culpa. Todos confessamos o mesmo. Ninguém diz: ‘sou genial, sou puro’. Para além disso, só depois de nos reconhecermos como filhos da puta, podemos começar a amar-nos”. O coração é ainda a víscera que permite aprender; é a mortalidade, única hipótese para o amor. Coração que canta, aprende e ama.

Máquina de salvação e de culpa — máquinas de amor. De fora para dentro; de dentro para fora.

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